Celso Daniel foi assassinado há 16 anos. Silvio Navarro, editor da Veja, revela detalhes do fantasma que ainda assombra os atos do PT.
Um fantasma ronda o Partido dos Trabalhadores: o fantasma de Celso Daniel. O ex-prefeito de Santo André, um dos homens mais carismáticos do PT, seria um dos primeiros na escala de sucessão de Lula, ombreando Dirceu e Palocci, quando tudo parecia bem e o PT é quem falava em “ética” e “contra a corrupção”. Foi seqüestrado, barbaramente torturado e assassinado assim que tentou rever o modelo de corrupção do partido no ABC paulista onde o PT nasceu.
Celso Daniel, que morreu há 16 anos nesta semana, hoje é usado até mesmo como verbo. Com tantos casos de mortes obscuras envolvendo pessoas que poderiam causar problemas ao PT, hoje podemos dizer que vários foram celsodanielizados. É a fatal gripe de Santo André. Eu celsodanielizo, tu celsodanielizas, ele celsodanieliza. De Toninho do PT, prefeito de Campinas morto um ano antes, cujo luto foi sufocado por ter morrido nas vésperas do atentado do 11 de setembro, até casos recentes, há um sem número de pessoas que atrapalharam o projeto de poder do PT que aparentemente foram celsodanielizadas.
O risco de celsodanielização é tão gritante que quase não há coragem sequer para comentar o caso sem se sentir em uma mira, mormente citando nomes que os brasileiros praticamente sabem que estão envolvidos no caso. Essa coragem, verdadeira virtude da fortaleza, foi assumida por Silvio Navarro, editor da revista Veja, e pelo editor Carlos Andreazza, que lançaram uma das maiores bombas literárias de 2016, o livro Celso Daniel: Política, corrupção e morte no coração do PT (ed. Record).
Fruto de anos de investigação, o livro consegue realizar exatamente a maior dificuldade que uma investigação policial enfrenta: ligar os pontos. Fatos e notícias sobre o caso Celso Daniel pulularam nesta última década e meia, e não pararam até hoje, mas o grande empecilho para o esclarecimento de meandros ainda nebulosos é unir informações tão díspares, variando de uma gangue de ladrões de carros na Favela Pantanal, na divisa entre São Paulo e Diadema, a intrincadas CPIs nas páginas de política, envolvendo nomes que variam de petistas poderosos como ministros, donos de jornais e blogs usados como fonte por jornalistas e um sem número de pessoas cercando o ex-presidente Lula.
O livro de Navarro se torna um acontecimento literário, e não apenas mais um livro de torcida política, não apenas por trazer detalhes inéditos, imagens, transcrições de documentos que são completamente desconhecidas do público: seu livro nem mesmo gasta muitas páginas com as aborrecidas questões político-partidárias já conhecidíssimas do caso, e sim em criar uma narrativa eletrizante sobre o seqüestro do ex-prefeito de Santo André por bandidos e como e por que a polícia nunca conseguiu “fechar” toda a história.
Há uma fórmula manjada nos clássicos da literatura policial, de que um investigador particular decifra o caso, enquanto a polícia está ocupada em produzir documentos. O caso de Celso Daniel é ainda mais escabroso: Silvio Navarro explica justamente o que confunde a polícia, o quanto a história deu torções, o absurdo montante de “meras coincidências” que envolveram o assassinato e, sobretudo, o pós-assassinato, com o PT no poder – e como a polícia, que na maior parte do tempo agiu com exímio profissionalismo, não pôde traduzir para a linguagem forense o que qualquer análise que reúna os pontos pode notar que aconteceu, mas sem poder mostrar “coincidências” em um Boletim de Ocorrência.
Como a linguagem comum é a usada todo dia pelas pessoas, e não a linguagem jurídica-forense, inevitavelmente o povo sabe mais sobre o assassinato de Celso Daniel do que o que pode ser dito tecnicamente. O caso virou o maior tabu para petistas: um caudatário do PT, hoje, só pode é não comentar o assunto de maneira nenhuma, pois não há vivalma (e mortos não contam histórias) que acredite na tese de “crime comum”.
O livro de Silvio Navarro se torna assim um thriller de tirar o fôlego, como só um país de literatura amputada como o Brasil pode oferecer: a realidade, contada pela não-ficção, não é apenas mais estranha do que a ficção e sua busca por verossimilhança, mas se torna urgente pela falta de elucidação do caso e, com raríssimos romancistas, é a única matriz narrativa do país.
Celso Daniel jantou no restaurante Rubayat da alameda Santos com seu amigo Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, que também morreu no hospital em setembro último logo após o livro ser lançado. Sombra seria ouvido novamente pela polícia, dado que o STF recusou a tese da defesa, de anular completamente o processo, exigindo que se voltasse à fase de interrogatórios. A conversa envolvia uma mudança na relação da prefeitura com as empresas de ônibus das quais recolhiam dinheiro, e das quais Sombra, sócio de Ronan Maria Pinto, era um dos donos. O prefeito havia sido avisado pela cúpula do PT pouco antes de que Lula faria a então campanha mais cara da história, finalmente com chance real de sucesso à presidência, e Celso Daniel logo seria um poderoso ministro. Era preciso deixar as contas da prefeitura com aparência de honestidade. A mudança de tom de Celso já alertara Sombra semanas antes.
Ambos saíram na Pajero de Sombra, que foi ao volante. Ao passar pela região de Três Tombos, no caminho para Santo André, o Pajero foi perseguido. Tiros foram disparados, mas o carro só parou quando foi bruscamente fechado. Sombra mudaria sua versão da narrativa para a polícia várias vezes a partir deste ponto. Suas marchas teriam falhado em uma subida. O sistema de travamento das portas teria falhado com as batidas sucessivas, mesmo que Sombra, heroicamente, tenha tentado reacioná-lo. A porta do passageiro abriu e Celso Daniel foi levado.
A quantidade de erros, incoerências, falhas, tergiversações e voltas na narrativa para o que aconteceu a seguir atrapalhou tanto a investigação que apenas criminosos comuns foram presos, mas o saldo de mortes que se seguiu é um enigma tão grande que só pode ser provisionalmente ignorado para se continuar acreditando no PT.
Celso Daniel foi levado por uma quadrilha de assaltantes da favela Pantanal. Os relatórios da polícia e os testemunhos dos envolvidos confundem carros, pessoas, locais, roupas, cores, tudo. A perícia acabou por descobrir que nem mesmo o travamento das portas estava falho, ou houve qualquer problema com o câmbio da Pajero. Celso Daniel parecia estar com mais inimigos do que imaginava no momento.
É curioso observar algumas notícias aparentemente banais na época, relidas pelo prisma da distância histórica. Por exemplo, lembrar que os primeiros a falar em “crime político” foram… os petistas. Com o calendário eleitoral próximo, foi José Dirceu o primeiro a criticar que “assassinaram dois prefeitos do PT”, e queria “irresponsável” não explorar politicamente a tragédia. Com a crise de segurança em São Paulo na época, estado controlado pelos tucanos, a Folha também estamparia que o caso piora a crise na segurança do estado. O mundo daria muitas voltas.
A quadrilha da Favela Pantanal é o primeiro centro de investigação de Silvio Navarro, que consegue uma riqueza de detalhes a respeito de seus membros espantosa. Ainda mais espantosa é uma mera coincidência bem bizarra sobre Ronan Maria Pinto, preso na ominosa Operação Carbono 14 da Lava Jato. Hoje dono do Diário do Grande ABC, jornal que antes era o mais robusto investigador do caso, e também acusado de ter cobrado do PT para não incriminar Lula no caso,
Ronan Maria Pinto era responsável por quarenta dos 123 contratos de transporte público de Santo André, dono de dezessete empresas do setor em 2002. Um de seus sócios era Ozias Vaz, o amigo íntimo para a casa de quem Sérgio Sombra fora logo depois que deixou a delegacia, na noite do sequestro de Celso Daniel. Ozias frequentava regularmente um salão de beleza na favela Pantanal, cuja cabeleireira era irmã de Perninha, encarregado da pintura de seus ônibus. Na funilaria de Perninha, um dos funcionários mirins era o menor C. W., acusado mais tarde de roubar a Blazer usada no rapto do prefeito de Santo André.
Explicar por que um riquíssimo empresário do ramo de transportes freqüentaria um salão de beleza em uma favela, com proximidade a quem esteve envolvido no seqüestro do prefeito, que logo se descobriria ter sido encomendado por um “peixe grande”, é uma das coisas que certamente só pode ser explicada pela Teoria da Mera Coincidência.
Outro detalhe curiosíssimo que Silvio Navarro aponta é que o principal mandante da quadrilha da Favela Pantanal, Ivan Monstro, exigiu que todos os pertences de Celso Daniel ficassem sob sua guarda, exceto um envelope pardo grande, com papéis que Celso Daniel carregava (que misteriosamente continuaram em suas mãos mesmo após a perseguição, o tiroteio e a porta aberta). Esse deveria ser queimado imediatamente. Por que um seqüestrador “comum”, que supostamente nem deveria saber quem estava seqüestrando, exigiu tal coisa mal vendo o envelope, é um mistério insondável.
A quantidade de dados que Silvio Navarro consegue explicar, que nem mesmo quem mais leu notícias sobre o caso conhece, surpreende pela pesquisa – e pelos buracos de queijo suíço na narrativa comum do crime. De todos os feitos do livro, juntar as peças do quebra-cabeça (fora ser um livro de puro destilamento de adrenalina) são méritos incríveis. Como por exemplo nunca terem usado os telefones para precificar o resgate do prefeito. Ou suas roupas terem sido misteriosamente trocadas quando encontraram o seu corpo, como sua cueca atestou. A miríade de informações desencontradas que Navarro conta surpreendem até quem imagina não ser capaz de surpresas no PT, mesmo no caso Celso Daniel.
O clima de caçada que se seguiu, colocado em um filme, seria criticado como inverossímil, algo que na vida real nunca aconteceria. A favela foi achada por um bandido atrapalhado ter ligado por alguns segundos o celular de Celso Daniel. Os seqüestradores e assassinos da favela Pantanal escapariam inúmeras vezes da polícia por ações dignas de filme de espionagem, ou de comédia pastelão.
Uma das peças-chaves para elucidar o caso, Dionísio de Aquino Severo, que merece dois capítulos exclusivos, teve um destino de épico de Michael Bay: o homem que provavelmente foi um dos primeiros a serem acionados para capturar o “peixe grande”, armando o seqüestro do prefeito de Santo André, fugiu de helicóptero de um presídio em Guarulhos, para logo ser colocado em outro, diante do então incipiente PCC. O resultado seria extremamente parecido com as notícias recentes sobre o grupo criminoso.
O violentíssimo Dionísio, numa das mais prosaicas e felizes coincidências da vida, pouco tempo antes havia sido visto na prefeitura de Santo André por seu advogado. Vestindo um terno alinhado, avisou que havia abandonado o crime por conseguir um emprego. O advogado, Adão Nery, depois recuaria na declaração, dizendo-se intimidado por um homem ligado ao PT. O emprego, conforme eletrizantes declarações desencontradas para a Justiça, seria como um dos chefes de segurança de Sombra.
As mortes misteriosas que se seguiram foram mais do que uma carnificina. Até o garçom que serviu a s refeições de Sombra e Celso Daniel no Rubayat, que poderia ter ouvido algo revelador, foi assassinado. O PT sempre tratou tudo como um crime comum, mas prefere não ter de comentar o caso nunca, por ninguém comprar a historieta. Há motivos sobejantes: não há tantos “suicídios” e “assassinatos comuns” pela Teoria da Mera Coincidência assim.
O livro de Silvio Navarro sobre Celso Daniel é um achado literário no jornalismo investigativo brasileiro: um estudo com tantos detalhes, e com um tema de tamanha importância nacional que, fosse americano, seria um forte candidato a um Pulitzer.
É uma obra capaz, senão de elucidar o maior quebra-cabeça do noticiário político-criminal do país, mostrar justamente por que a polícia não consegue prender pessoas envolvidas até o pescoço no maior assassinato político do país, mesmo quando as relações promíscuas, para dizer o mínimo, são tão óbvias.
É curioso notar como Celso Daniel, diga-se, ganhou projeção protestando contra o aumento das tarifas de transporte público na década de 80 – o mesmo tema que geraria a quase revolução de junho de 2013, e o tema que definiu simplesmente todas as eleições para a prefeitura de São Paulo (muito mais do que saúde ou educação) desde os anos 80 até Fernando Haddad. Sua medida, na época, foi enxugar o salário do funcionalismo público e vender à iniciativa privada a companhia municipal de ônibus – o que o PT passaria por décadas a fio chamando de “neoliberalismo”, ou “entreguismo” ou “privataria”, criando toda sorte de movimentos pela estatização completa do transporte.
O modelo que o PT fez para sua “privatização” particular se livrou da péssima gestão estatal, preferindo cobrar propinas de empresários do ramo, que logo veriam a felicidade de oferecer um serviço tão péssimo quanto o Estado, mas tendo todas as licitações vencidas por mero acaso quando pagam propina para o partido no poder. São cortantes as passagens sobre como Ângela Gabrilli, irmã da futura deputada federal tucana Mara Gabrilli, sofreu com a trupe de Celso Daniel e do PT ao prestar serviços no ABC. Com agravantes imediatos: Sombra e o supersecretário Klinger Luiz de Oliveira andavam armados. Sombra era ex-segurança. Mas por que Kingler usava uma arma?
Celso Daniel claramente criou e permitiu um propinoduto “altruísta” em Santo André, quando se tratava de dar dinheiro ao partido e manter o Estado aparentemente atuando no azul – naquilo que seria o primeiro embrião do mensalão e do petrolão, que não foi abortado a tempo. Contudo, alertado por Lula de que precisaria ter um caixa mais limpo, tomou um caminho diverso de outro prefeito petista com o mesmo “dilema” (no caso, com empresas de saneamento básico), Antonio Palocci: ao invés de permitir ainda mais esbórnia para apagar as primeiras, recusou que o dinheiro tomado por propinas fosse usado para fins pessoais, e não apenas para o partido ou as contas públicas.
Lixo, aliás, também houve em Santo André, com a Target Tecnologia e Serviços. A campanha do prefeito, repetindo um script hoje manjado, também seria paga com dinheiro de propinas. Um sindicalista foi assassinado a tiros dentro de sua sala. A polícia concluiu que fora uma briga de sindicalistas.
O impressionante clima de desalento do livro é notado quando se percebe que as pessoas que mais friamente usaram de mortes, seqüestros, ameaças e extorsão para atingir seus objetivos eram sempre incensadas quando tratadas pela imprensa, como pessoas “éticas”, honradas e ilibadas, capazes de trazer progresso à administração pública. Muitos são jornalistas que, quando não são respeitados, são usados como fonte por outros respeitados. Outros são “empresários” com vínculos estatais ou políticos graúdos com poder e dinheiro até hoje.
Sobre os “três mosqueteiros de Santo André” (Sombra, Ronan e Kingler) e seus emissários para lavar dinheiro no exterior, alguns dos parágrafos mais reveladores do livro falam por si:
Em 2006, a cozinheira Zildete Leite dos Reis, que trabalhava em um bufê que servia Arcanjo, e um ex-segurança afirmaram à CPI dos Bingos que haviam visto os três mosqueteiros de Santo André reunidos com o bicheiro.
O guarda-costas iria além: disse ter presenciado uma reunião na qual Sérgio Sombra pediu apoio para organizar o sequestro de Celso Daniel, que descobrira o “caixa 3” montado para que ele, Ronan e Klinger ficassem com uma parte dos recursos desviados e destinados ao PT – dinheiro que era lavado com a ajuda das conexões de Arcanjo.
Zildete acusava o bicheiro de ter encomendado a morte de seu irmão. O depoimento dela, entretanto, não seria levado a sério porque falou que outros petistas graúdos também teriam se encontrado com Arcanjo, como os ex-ministros Antonio Palocci Filho e José Dirceu, o braço direito de Lula, Paulo Okamotto, o ex-deputado Bispo Rodrigues e até o traficante Fernandinho Beira-Mar. Os senadores consideraram que tudo aquilo fosse ficção.
Hoje, só tais palavras seriam o sobejante para se rever tudo o que se pensou saber sobre Celso Daniel, e que até agora ainda não se sabe.
A quantidade de informações sobre o caso Celso Daniel, sua narrativa fluída e a atualidade do caso – como Sombra ter morrido pouco depois do livro ir a público – mostra a urgência do trabalho de Silvio Navarro. Um livro que, sozinho, pensando-se nas conseqüências de tudo o que se lê, é capaz de explicar por que o apelo do PT e da esquerda, com sua retórica sobre Estado corrigindo a “desigualdade” com “serviços públicos”, é capaz de apenas aumentar a desigualdade entre a população e os gestores do Estado, não permitindo ao povo escolher onde colocar seu dinheiro tomado por impostos e como todas as notícias sobre o caso acabam sendo abafadas, quando se compra também os jornais.
Sombra foi defendido por um dos advogados mais caros do Brasil, o criminalista Roberto Podval, que também defende Lula. Nunca enfrentou júri popular. Foi solto por decisão monocrática de Nelson Jobim, durante as férias do Judiciário.
E um dos maiores mistérios sobre o caso, tratado como nota de rodapé, é analisado em cruéis detalhes de revirar o estômago: por que o celular do deputado estadual petista Donisete Pereira Braga, até 2016 prefeito de Mauá, foi flagrado nas cercanias do cativeiro de Celso Daniel – e por que, além de tantas ligações pela madrugada em Embu para Sombra, recebeu três cheques do mesmo Sombra. O Tribunal de Justiça arquivou o caso, por considerar as provas insuficientes.
O PT, como mostra Silvio Navarro, conseguiu encerrar o caso dois meses depois do assassinato. É surpreendente, na obra do editor de Veja, como a Justiça é célere quando se trata de livrar petistas, e como petistas ricos freqüentam até favelas e terrenos baldios que servem de cativeiro quando há úteis criminosos por perto, tudo por mera coincidência.
Fonte: Senso Incomum
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