Foi realizado nos dias 19 e 20 julho o encontro das Famílias Bernardo, Gloria e Faustino na Escola Municipal Pastorzinho no Bairro Boa Esperança em Seropédica, onde reuniu cerca de 320 pessoas que vieram se confraternizar e conhecer novos membros da família. Neste encontro foram realizadas várias atividades, como palestras com um Médico de família Cubano falando sobre doenças hereditárias, uma Psicóloga falando sobre a autoestima, como também Bingo, Desfile, Capoeira, e Segunda Mostra de talentos.
Wilson Beserra esteve presente no evento e elogiou o trabalho dessa associação e destacou a importância destas reuniões para as famílias: “Este evento vem com uma proposta de unir mais as famílias, no convívio e na sua história, a importância que politicamente trás em discutir seus problemas comuns e achar soluções, e aumentar os laços afetivos” destacou.
Luiz Claudio Oliveira um dos integrantes Associação Bernardo, Gloria e Faustino disse: “Nós somos uma rede a partir de três linhagens diferentes, nossa reunião tem como proposito organizar a memória da nossa família, porque a memória já existe, mais existe individualmente, e quando nós nos encontramos temos a oportunidade de transformar as memorais individuais em memorias coletivas, e quando conseguimos transformar em memória coletiva a gente consegue pensar em nós mesmo a partir de uma história que não são contadas em livros de literatura, é uma história contada por nós”.
Baseado nisso escrevi este artigo que é parte das reflexões de minha tese de doutorado cujo objeto de investigação é a rede familiar Bernardo-Gloria-Faustino, que tem sua principal configuração na cidade de Rio Claro, distante cerca de 120 km da capital do Rio de Janeiro. Desde 2006 o grupo familiar passou a se organizar em torno da realização de encontros anuais que mobilizam centenas de parentes com os fins centrais de relembrar o passado, celebrar a memória dos seus ancestrais e transmitir tradições às gerações atuais e futuras. A pesquisa etnográfica e de cunho histórico busca analisar ações que parecem contribuir para a objetivação de um novo ethos familial do sujeito negro brasileiro. O objetivo neste artigo é refletir sobre a importância da oralidade e da reconstrução de espaços míticos, por meio da memória, na sustentação do discurso que prima pelo reconhecimento de uma identidade familiar permeada pela afirmação de uma identidade afro-brasileira.
I. Introdução
Em 2002 tive a oportunidade de trabalhar numa pesquisa cuja finalidade era caracterizar comunidades tradicionais quilombolas no estado do Rio de Janeiro. A partir de inferências na região do Vale do Paraíba Fluminense, mais especificamente nas cidades de Rio Claro, Angra dos Reis e Paraty, considerei a hipótese da permanência de grupos familiares, descendentes de escravos, em localidades desta região, não na condição de remanescentes de quilombos, mas de famílias tradicionais, além de unidos por consanguinidade, também pela valorização de práticas tradicionais comuns, criadas antes e durante o tempo do cativeiro. Finda a pesquisa dois anos depois, retornei a algumas cidades da região, especialmente a Rio Claro, e passei a recolher dados sobre uma rede familiar determinada, os Bernardo-Gloria-Faustino que desde 2006 se organizam em torno da realização de encontros anuais, mobilizando centenas de parentes com os fins centrais de relembrar o passado, celebrar a memória dos seus ancestrais e transmitir tradições às gerações futuras.
Na primeira parte deste trabalho são apresentadas algumas características da rede familiar em estudo quanto ao seu contexto sócio-histórico e territorial. Em seguida, são apontadas evidências de como a construção da identidade familiar do grupo tem sido fecundada por referências positivas a sua ancestralidade, referências estas mediadas pela transmissão oral de valores e tradições sedimentados na memória dos seus integrantes, crescentemente transformados em mecanismos eficientes de fortalecimento de uma memória coletiva. Recorro aos dados obtidos durante a observação participante nos diferentes acontecimentos que envidam a convivência social nas configurações familiares[1] integrantes da rede. Outros elementos metodológicos da pesquisa são o acompanhamento dos próprios encontros e a consulta a documentos cartoriais (certidões de nascimento, casamento e óbito) e eclesiásticos (livros de batistério), mais especialmente nas cidades de Rio Claro, Angra dos Reis e Volta Redonda. Concluo analisando um acontecimento marcante para refletir sobre o que seria a retomada, de parte do grupo, de determinadas práticas tradicionais de organização territorial e convívio social fincadas na memória.
II. Os Bernardo-Glória-Faustino e a localidade
O censo demográfico dos Bernardo-Glória-Faustino, consolidado em março de 2013, dá conta de 895[2] membros de consanguinidade direta e indireta com a primeira geração, por linhagem paterna, de descendentes de famílias desterradas do continente africano, apartadas e comercializadas na América, provavelmente desembarcadas em Porto Bracuí (Angra dos Reis)[3].
[1] Adoto este termo para designar as diferentes localizações territoriais sempre referenciadas ao “ponto zero”, na cidade de Rio Claro (sobre isto ver: DUARTE & GOMES, 2008).
[2] Foi realizada uma contagem geral dos indivíduos, apenas os que possuem ascendência por consanguinidade, desprezando-se os esposadores. O censo foi aplicado com o auxílio dos dirigentes da Associação da família, antes e durante o Encontro anual de 2013.
[3]No antigo porto clandestino, situado nas terras da antiga fazenda Bracuí, uma das várias propriedades de José Joaquim de Souza Breves, considerado o maior escravagista do Brasil, encontra-se instalado atualmente o Porto Marina Bracuhy, um condomínio de alto padrão construtivo. Atravessando-se a rodovia que liga as cidades do Rio de Janeiro a Santos, em São Paulo, na parte oeste da localidade, lado oposto ao do Condomínio, encontram-se estabelecidas duas comunidades tradicionais, uma a Aldeia Guarani Sapucaí,a outra de quilombolas, que se autodenomina “comunidade remanescente de quilombos Santa Rita do Bracuí”. Pelo porto do Bracuí, no século XIX, entraram ilegalmente alguns milhares de africanos transformados em escravos no Vale do Paraíba para o trabalho nas fazendas de café, então principal produto da pauta de exportação do Brasil. O último desembarque ali, de mais de 500 negros de Moçambique, em 1853, foi alvo da repressão do estado imperial e ficou conhecido na imprensa como “O caso do Bracuí” (C.f. ABREU: 1995, p. 167).
Surgidos ao final da segunda metade do século XIX, no Brasil Imperial e escravocrata, constituem objeto da investigação a linhagem, ou o “tronco”, dos Glória, iniciado por Benedito Glória e Maria Graciana; o “tronco” dos Faustino, que tem em Faustino José Deoduque e Petronilha Maria da Conceição os seus ascendentes; e o “tronco” dos Bernardo – que inclui o autor desta tese, em quarta geração –, proveniente da união de Manoel Bernardo da Silva e Serafina Maria da Conceição.
É recorrente entre os integrantes mais antigos do grupo que a origem dos três “troncos” está ligada a um momento indeterminado em que os três patriarcas teriam imigrado de São Paulo e criado família na região onde se encontra a cidade de Rio Claro. Os Glória, conforme o depoimento de Laurinda Maria da Glória, a “tia Laurinda”, falecida a 23 de agosto de 2009 aos 97 anos, foi iniciado por seus pais, filhos de escravos de uma fazenda da qual não lembrava o nome, na cidade de Bananal[1] (Entrevista: Laurinda Maria da Glória, jul, 2007).
O principal “lugar de memória” (Nora, 1993) do grupo é no atual Morro do Estado[2], situado atrás da Vila Velha, bairro que deu origem a cidade de Rio Claro, em torno da capelinha em homenagem a São José. Entretanto, a rede familiar dos Bernardo-Glória-Faustino, criada na esteira dos deslocamentos territoriais de ex-cativos subsequentes à abolição da escravatura, foi pouco a pouco se espraiando para as cidades de Barra Mansa, Angra dos Reis, Volta Redonda, Vassouras, Piraí, Brasília, Recife, Rio de Janeiro, Seropédica, Guapimirim, São Paulo, Cuiabá e Buenos Aires, na Argentina.
[1] “Cidade com vários atrativos naturais e inúmeros casarões em estilo colonial que até hoje são encontrados no centro histórico e nas grandes fazendas. No passado, foi a principal via de escoamento das Minas Gerais para o porto de Parati (RJ). Durante o ciclo cafeeiro, Bananal experimentou o esplendor de ser uma das cidades mais ricas do Brasil, onde seus fazendeiros avalizavam empréstimos da Inglaterra para o Governo Brasileiro”(Disponível em: http://www.caminhosdacorte.com.br/bananal.html. Acesso em 14/07/2014).
[2] Com uma área de aproximadamente 03 alqueires (145.000m²), recebeu esta denominação quando o governo do Estado do Rio de Janeiro (década de 60) lá construiu uma estação de tratamento de água para melhorar o abastecimento da cidade.
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