Uma abordagem brevíssima do remédio constitucional na doutrina e jurisprudência.
1 O remédio constitucional
A origem da Ação Popular como instituto de preservação dos direitos coletivos remonta ao Direito Romano, civilização em que, afirmam historiadores, era destinada, entre outras funções, à defesa do túmulo da família. Encontrada em outros ordenamentos ao redor do mundo, como de Portugal, Espanha e Argentina, a ação popular faz-se presente no direito brasileiro desde 1824, mais precisamente, no art.157 da Constituição do Império.[1]
Na Constituição Federal de 1988 a Ação Popular passou a figurar entre os denominados remédios constitucionais, tendo previsão expressa no art. 5º, incisoLXXIII, sendo regulamentado pela Lei n. 4.717 de 29 de junho de 1965. Por meio dela é facultado a qualquer cidadão, [2] leia-se, brasileiro nato, naturalizado e o português (art. 12§ 1º da CF/88), no pleno gozo dos seus direitos cívicos e políticos, pleitear pela anulação ou declaração de nulidade do ato lesivo ao patrimônio público ou ao patrimônio cultural brasileiro, praticado por pessoas públicas ou privadas e demais entidades arroladas no art. 1ºº da lei regulamentadora, bem como contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado ato lesivo, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e, por fim, contra os beneficiários diretos (caso não existam, a ação é proposta contra as pessoas indicadas no art. 6º da lei regulamentadora).
A princípio o autor fica isento de arcar com as custas processuais e de sucumbência, exceto se restar evidente a litigância de ma-fé. E devemos enfatizar que o risco para o autor de má-fé é substancialmente grande, visto que a lei prevê nada menos que uma condenação em dez vezes as custas processuais da Ação Popular.
“A não ser quando há comprovação de má‑fé do autor da ação popular, não pode ele ser condenado nos ônus das custas e da sucumbência.” (RE 221.291, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11‑4‑2000, Primeira Turma, DJ de 9‑6‑2000.) No mesmo sentido: AI 582.683‑AgR, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 17‑8‑2010, Segunda Turma, DJE de 17‑9‑2010. Vide: AR 1.178, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 3‑5‑1995, Plenário, DJ de 6‑9‑1996.
Encontraremos na doutrina e na jurisprudência que o objeto da Ação Popular é sempre alusivo ao interesse geral e a direitos difusos, pois que, muito embora, habitual e naturalmente o autor aja compelido por um juízo de defesa que tem seu nascedouro em interesse próprio e não alheio, sua iniciativa, por assim dizer, favorece a coletividade.[3]
Protege-se, pela Ação Popular, o interesse geral (patrimônio público e moralidade administrativa) ou determinados interesses difusos (patrimônio histórico e cultural e meio ambiente). Por ela não se amparam interesses próprios, mas sim da comunidade. O beneficiário direto e imediato da ação não é o autor popular, mas o povo enquanto titular do direito subjetivo ao governo honesto. Tem fins repressivos e preventivos da atividade administrativa lesiva ao patrimônio público.[4]
O Ministério Público, enquanto fiscal da lei, acompanha a Ação Popular preservando a regularidade processual e atuando no sentido de dar celeridade a apuração da responsabilidade civil e criminal, ficando-lhe vedado, não obstante, pela lei regulamentadora, assumir a defesa do ato impugnado ou de seus autores (art. 6º, § 4ºda lei n. 4.717). Caso o titular da Ação Popular desista dela, ou por sua desídia finde por ensejar a absolvição do (s) réu (s), serão publicados editais, por três vezes, no prazo de 30 dias, correndo o prazo decadencial de 90 dias a partir da última publicação para que, qualquer cidadão ou o representante do Ministério Público dêem continuidade à ela em substituição ao titular original.[5]
2 Extensão do conceito de patrimônio na ação popular
A Lei n. 4.717/65, em seu art. 1º, § 1º, aduz que, para efeitos legais, considera-se patrimônio público os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.
Para Alexandre Mazza, no seu Manual de Direito Administrativo, patrimônio público é sinônimo de domínio público, que:
Em sentido amplo, domínio público é o poder de senhoria que o Estado exerce sobre os bens públicos, bem como a capacidade de regulação estatal sobre os bens do patrimônio privado. A noção lato sensu, de domínio público deriva do chamado domínio eminente, que é “o poder político pelo qual o Estado submete à sua vontade todas as coisas de seu território”. Porém, o domínio eminente exercido pelo Estado não quer dizer que detenha a propriedade de todos os bens existentes em seu território. Os bens públicos pertencem ao Estado; já os bens privados estão submetidos a uma regulamentação jurídica estatal.[6]
A Constituição Federal arrola em seus artigos 20 e 26, respectivamente, os bens da União e dos Estados. O Código Civil, em seu art. 99, por sua vez, determina os bens de uso comum do povo, os de uso especial e os chamados dominicais. Os bens dominicais constituem o patrimônio da União, estados ou municípios como objeto de direito pessoal ou real, além dos bens do patrimônio fiscal, como móveis, imóveis, terrenos da marinha, ilhas em mares territoriais, terras de fronteira, terras devolutas, estradas de ferro, arsenais, telégrafos e jazidas de minério.[7]
Quanto aos bens de valor artístico, estético, histórico e turístico, estes integram o patrimônio cultural brasileiro, definidos pela Constituição Federal em seu art. 216:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I.as formas de expressão;
II.os modos de criar, fazer e viver;
III.as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV.as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V.os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
3 Efeitos da sentença na ação popular
Os professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, em sua obra Direito Constitucional Descomplicado, classificam a Ação Popular quanto ao momento em que operam seus efeitos como repressiva ou preventiva[8]:
A ação poderá ser utilizada de modo preventivo ou repressivo. Será preventiva quando visar a impedir a consumação de um ato lesivo ao patrimônio público, quando for ajuizada antes da prática do ato ilegal ou imoral. Será repressiva quando já há um dano causado ao patrimônio público, ou seja, quando a ação é proposta após a ocorrência da lesão.[9]
Segundo depreende-se do art. 18 da Lei n. 4.717/65, a sentença proferida em Ação Popular terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido julgada improcedente por deficiência de prova, o que não impede a superveniência de outra ação, encabeçada por qualquer cidadão, com idêntico fundamento, valendo-se, entretanto, de novas provas.
Polêmicas surgem acerca dessa hipótese na lei regulamentadora assentando a tese de que ela feriria o Princípio da Igualdade Processual. Porém, de acordo com o Adv. Me. José Arnaldo Vitagliano, é preciso averiguarmos que:
As ações popular e civil pública, pelo seu objeto, possuem grande ressonância política e social, e podem afetar interesses de grande vulto. Nestas condições, a possibilidade de renovar-se a demanda, quando improcedente por deficiência probatória, atende aos valores sociais e políticos que justificam a existência dessas ações. De outro modo, seriam elas vulneráveis se, acaso, ocorresse conluio entre autor e réu. O afastamento da res iudicata, nesta hipótese, mediante a permissão legal dereiteração da demanda, visa, exatamente, resguardar o princípio da boa-fé processual, em assunto tão delicado, o qual, por essa peculiaridade, exclui qualquer isonomia com situações processuais de outra natureza.[10]
4 Algumas decisões para ilustraraspeculiaridades da ação popular
O art. 2º da Lei n. 4.717/65 trás os casos nos quais verificam-se hipóteses de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio público. São eles: a incompetência, o vício de forma, a ilegalidade do objeto, inexistência de motivos e desvio de finalidade.
[…] tem sido comum a utilização da ação popular para: (a) anulação de concessão de aumento abusivo de subsídios dos vereadores pela respectiva câmara municipal; (b) anulação de venda fraudulenta de bem público; (c) anulação de contratação superfaturada de obras e serviços; (d) anulação de edital de licitação pública que apresente flagrante favoritismo a determinada empresa; (e) anulação de isenção fiscal concedida ilegalmente; (f) anulação de autorização de desmatamento em área protegida pelo patrimônio ambiental; (g) anulação de nomeação fraudulenta de servidores para cargo público, etc.[11]
4.1.Vício de forma
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. ILEGALIDADES EM PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. PEDIDO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. PROCEDÊNCIA. JUSTIFICATIVA PLAUSÍVEL. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS LICITATÓRIOS. 1. A violação do artigo 535, do Código de Processo Civil– CPC, não se efetivou no caso dos autos, uma vez que não se vislumbra omissão no acórdão recorrido capaz de tornar nula a decisão impugnada no especial. 2. O acórdão recorrido proferido pelo Tribunal ordinário entendeu que o recorrente não apontou circunstâncias capazes de justificar a exibição de documentos perquirida. Este entendimento merece reforma. 3. A ação popular intentada visa demonstrar irregularidades ocorridas em procedimentos licitatórios realizados pela recorrida. E, requer, o recorrente, a exibição dos documentos – que estão no poder da recorrida – relativos à licitação para comprovar as irregularidades apontadas. 4. Está claramente justificado o pedido de exibição de documentos, pois não existe conteúdo probatório mais robusto do que o solicitado pelo recorrente, capaz de comprovar a alegada ilegalidade licitatória. 5. Procedimentos licitatórios são públicos. A licitação é regida pela publicidade dos atos, conforme explicita o art. 3º da Lei n. 8.666/93. Nos dizeres de Hely Lopes Meirelles:”a licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura”. 6. Sendo assim, fundamentado no princípio da publicidade dos atos dos procedimentos licitatórios, e no legítimo interesse do recorrente de ter acesso aos documentos que possam provar as alegações presentes na ação popular, entende-se que a documentação pleiteada deve ser fornecida. 7. Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1143807 MG 2009/0182446-3, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 14/09/2010, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/10/2010)
Ação popular. Procedência. Pressupostos. Na maioria das vezes, a lesividade ao erário público decorre da própria ilegalidade do ato praticado. Assim o é quando se dá a contratação, por Município, de serviços que poderiam ser prestados por servidores, sem a feitura de licitação e sem que o ato administrativo tenha sido precedido da necessária justificativa.” (RE 160.381, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 29‑3‑1994, Primeira Turma, DJ de 12‑8‑1994.)
4.2.Desvio de finalidade
AGRAVO DE INSTRUMENTO – LIMINAR – AÇÃO POPULAR – AUTORIZAÇÃO DE USO DE ÁREA PÚBLICA. 1. FIGURANDO-SE, NESTA SEDE DE COGNIÇÃO SUMÁRIA, A POSSIBILIDADE DE DESVIO DE FINALIDADE DO BEM PÚBLICO, HÁBIL, PORTANTO, A LESAR O PATRIMÔNIO PÚBLICO, IMPÕE-SE A CONCESSÃO DE LIMINAR EM AÇÃO POPULAR PARA OBSTAR A CONSTRUÇÃO DE ESTACIONAMENTO OBJETO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE ÁREA PÚBLICA. 2. NEGOU-SE PROVIMENTO AO AGRAVO. Na verdade, o pedido de autorização de utilização de área pública para construção de estacionamento foi elaborado com a finalidade de atender aos alunos e familiares da instituição de ensino. De igual forma, o relatório de vistoria elaborado pelo Ministério Público informa que “existem cercas delimitando áreas, possivelmente públicas, e que estas vêm sendo utilizadas de forma privada” (fl. 110), fato que descaracterizaria a destinação do bem de uso comum do povo. (TJ-DF – AG: 20050020036826 DF, Relator: SÉRGIO ROCHA, Data de Julgamento: 04/10/2006, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: DJU 08/03/2007 Pág.: 123)
4.3.Incompetência
AÇÃO POPULAR. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL – ANULAÇÃO DA SENTENÇA PROFERIDA POR JUÍZO INCOMPETENTE. 1. Ação popular ajuizada em face do Município de Campinas e da SANASA – Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A, por descumprimento de Termo de Ajustamento de conduta – TAC firmado para recuperação ambiental da nascente do Ribeirão Quilombo, situada no domínio do Exército e área de preservação permanente – APP. 2. Diante da ausência de interesse da União Federal manifestado expressamente no feito, não se há falar em processamento perante Juízo Federal. Nula a sentença que extinguiu o processo sem resolução de mérito por incompetência da Justiça Federal, porque proferida pelo juízo incompetente. 3. Anulação da sentença para posterior remessa dos autos ao juízo estadual competente, com fundamento no artigo 113, § 2º do Código de Processo Civil. (TRF-3 – AC: 13162 SP 0013162-51.2006.4.03.6105, Relator: JUIZ CONVOCADO HERBERT DE BRUYN, Data de Julgamento: 06/12/2012, SEXTA TURMA)
Referências
LEMBO, Cláudio. A pessoa e seus direitos. – Baureri, SP: Manole, 2007.
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (org.). Código civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Silmara Juny Chinellato (coord.). – 3. Ed. – Barueri, SP: Manole, 2010.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. – 3. Ed., rev. E atualizada. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO: 2008.
VITAGLIANO, José Arnaldo. Ação popular características gerais e direito comparado. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em:. Acesso em: 14 maio 2013.
[1] LEMBO, 2007. P. 254-255.
[2] De acordo com a súmula 365 do STF “Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular”.
[3] Legitimidade dos cidadãos para a propositura de ação popular na defesa de interesses difusos (art. 5º, LXXIII, CF/1988), na qual o autor não visa à proteção de direito próprio, mas de toda a comunidade (…). O mandado de segurança não pode ser usado como sucedâneo de ação popular (Súmula 101/STF).” (MS 25.743‑ED, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 4‑10‑2011, Primeira Turma, DJE de 20‑10‑2011.)
[4] VITAGLIANO, 2013.
[5] A Ação Popular prescreve em 5 anos.
[6] MAZZA, 2012. P.534.
[7] MACHADO, 2010. P.118.
[8] Ou seja, cabe o pedido de liminar em Ação Popular.
[9] PAULO, ALEXANDRINO, 2008. P.211.
[10]VITAGLIANO, 2013.
[11] PAULO, ALEXANDRINO, 2008. P.213.
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