Serra das Araras em Piraí, tragédia que não podemos esquecer
12 de setembro de 2020

Memórias… As tragédias ocorridas em 2010/2011 nas cidades de Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo no RJ, bem como em SC e SP, não são, infelizmente, situações novas ou  atípicas.  O Brasil já sofreu outras calamidades do gênero…

Tragédia na Serra das Araras em 1967

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 Uma cruz de 10 metros na subida da Serra das Araras (Piraí-RJ), no local conhecido por Ponte Coberta, marca o início de um enorme cemitério construído pela natureza. Lá estão cerca de 1.700 mortos (fora os mais de 300 corpos resgatados) vítimas de soterramento pelo temporal que atingiu a serra em janeiro de 1967. Foi a maior tragédia da história do país, superando o número de mortos da atual tragédia na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, hoje acima de 500.

No triste episódio da Serra das Araras, suas encostas praticamente se dissolveram em um diâmetro de aproximadamente 30 quilômetros. Rios de lama compacta desceram a serra levando abaixo ônibus, caminhões e carros. A lama foi tanta que desceu a serra que o Rio Guandu mudou a cor do barro vermelho. A maioria desses veículos jamais foi encontrada. Uma ponte inteira também foi carregada pela avalanche. A Via Dutra ficou interditada por mais de três meses, nos dois sentidos.

Para se ter uma ideia do que ocorreu na Serra das Araras vamos comparar os índices pluviométricos: A atual tragédia de Teresópolis ocorreu após um volume de chuvas de 140 mm em 24 horas. Na Serra das Araras, em 1967, o volume de chuvas chegou a 275 mm em apenas três horas! Quase o dobro de água em um oitavo do tempo!

Visão aérea da Serra das Araras em 1967: 30 km de devastação completa

-“Vimos mortos nas árvores, braços na lama”

Bárbara Osório-MacLaren nasceu na Alemanha em janeiro de 1939. Tendo sobrevivido à II Guerra Mundial, veio para o Brasil, morar em São Paulo com a família em 1950, quando tinha 11 anos, atendendo a um chamado do avô materno, que já vivia no país.

Em 1961, mudou-se para a Inglaterra. Seis anos depois, aos 28 anos de idade, voltou ao Brasil para rever os amigos.

No Rio de Janeiro, em 22 de janeiro de 1967, às 23 horas, tomou um ônibus da Viação Cometa com destino a São Paulo. Um temporal desabou na Via Dutra, que acabara de ser duplicada. Nunca, naquela região, se havia visto ou iria se ver uma chuva tão forte quanto aquela que presenciava a jovem alemã e que ela relata a seguir:

– “Dentro de 40 minutos, na Via Dutra, houve um temporal. O nosso ônibus já estava na subida, mas a estrada se abriu a nossa frente. Lá ficamos até a manhã do dia seguinte. Pela rádio ouvimos os gritos de pessoas em outros carros, estavam sufocando na lama”.

Bárbara dá detalhes: “Pela manhã, descemos o morro a pé, vimos mortos nas árvores, braços na lama, as reportagens nos jornais falavam de mais de 400 mortos. Eu fui colocada em um caminhão em direção ao Centro do Rio, juntamente com outros feridos e corpos e pedaços de corpos(…). Subitamente, quando estávamos superando uma subida lamacenta, escutamos outro enorme estrondo ao nosso lado. Escuridão súbita! Quando acordei do coma ou desmaio, estava em Lisboa, Portugal. Em outras palavras, em vez de me levarem a um hospital no Rio, me despacharam para a Europa”.

A experiência da jovem alemã, hoje com 72 anos, foi contada há dois anos em um depoimento ao site “São Paulo Minha Cidade” e dá a dimensão do que ocorreu na Serra das Araras em 1967.

Mas seu depoimento, 42 anos após a tragédia, é uma raridade. Há poucas histórias registradas sobre os acontecimentos da época, por duas razões: carência de boa cobertura jornalística, em virtude dos parcos recursos tecnológicos da imprensa no período, e o fato de que o episódio foi tão trágico que poucos sobreviveram para testemunhá-lo.

A capital do Rio de Janeiro também sofreu com as chuvas de 67..

Outra das poucas histórias que sobreviveram também envolve um cidadão estrangeiro. É a história do motorista do ônibus prefixo 529 da Viação Cometa, que salvou a vida de quase todos os seus passageiros. Este motorista, quando vislumbrou a tragédia que poderia se suceder, pediu que todos deixassem o ônibus, e procurassem um local seguro, mas um homem recusou-se à deixar o veículo. Poucos minutos depois, uma rocha rolou e caiu sobre o ônibus, matando este passageiro, que era estrangeiro.
Alguns dos ônibus atingidos na tragédia, em destaque o Cometa 529

 

 
 

Advogado lembra trabalho de presos
O advogado Affonso José Soares, de Volta Redonda, que morava em Piraí na época da tragédia, lembrou que na madrugada da tragédia na Serra das Araras, trabalhava em um habeas corpus para a libertação de sete presos que haviam sido detidos, em flagrante, cerca de dois meses antes, praticando um jogo ilegal de aposta conhecido como “Jogo da Biquinha”.

Estava trabalhando até tarde da noite e madrugada no meu escritório e escutei os fortes estrondos por volta de uma ou duas horas da manhã.

Na manhã seguinte, segundo ele, o município foi “invadido” por passageiros do Rio de Janeiro e de São Paulo, que ficaram impossibilitados de passar pela serra devido aos desmoronamentos e crateras.

Antes do meio dia, no dia da tragédia, o advogado lembra que foi procurado pelo delegado que pediu sua ajuda para convencer os presidiários a colaborarem no resgate das vítimas.

Os sete presos fizeram o trabalham mais pesado do salvamento: foram amarrados por cordas e descidos até o local em que estavam às vítimas.  Além de auxiliar no salvamento e nos primeiros socorros aos sobreviventes, apanhavam corpos e os traziam abraçados.

– “Eles eram fortes e fizeram um trabalho que ninguém queria fazer. Trabalharam por 48 horas e voltaram à delegacia para ajudar na parte burocrática”, frisou Affonso.

A coragem e disponibilidade imediata foi reconhecida e posteriormente utilizada como fato inexorável na liberdade destes homens. 

Caraguatatuba – 1967

O ano de 1967 foi realmente diferente. Em março, dois meses após a tragédia da Serra das Araras, outro desastre atingiu Caraguatatuba, no litoral paulista.

Chovia quase todos os dias desde o início do ano (541 mm só em janeiro, o dobro do normal). Do dia 17 para 18 de março, um temporal produziu quase 200 mm de chuvas em um solo já encharcado. No início da tarde de 18 de março, sábado, a tragédia aconteceu sob intenso temporal que chegou a acumular 580 mm(!!!) de chuvas em dois dias (Teresópolis teve 366 mm em 12 dias).

Segundos os relatos da época, houve uma avalanche de lama, pedras, milhares de árvores inteiras e troncos que desceu das encostas da Serra do Mar, destruindo casas, ruas, estradas e até uma ponte.

Cerca de 400 casas simplesmente sumiram debaixo da lama. Mais de 3 mil pessoas ficaram desabrigadas (20% da população da época). O número de mortos – cerca de 400 – foi feito por estimativa, pois a maioria dos corpos foi soterrada ou arrastada para o mar.

Detalhe: Caraguatatuba, em 1967, era um balneário turístico de 15 mil habitantes. Dá para imaginar quais seriam as consequências se aquela tragédia ocorresse hoje, com os atuais 100 mil habitantes.

Serra das Araras

“Eram mais ou menos dez da noite quando começou a chuva. Chovia muito, moço. Nunca tinha visto nada igual àquilo na minha vida. E, depois, nunca mais vi de novo. Morava muita gente lá no bairro. Eu vivia com meu marido e a gente tinha sete filhos. A minha filha mais velha tinha 15 anos. Sobrevivemos, mas nunca vou me esquecer aquela noite. Quase todo mundo perdeu parente na chuva.”