Lá onde Villegagnon desembarcou…
A França Antártica (1555-1560)
A insólita tentativa de implantação de uma colônia francesa no Rio de Janeiro, em pleno século XVI, é uma das mais densas máquinas de sonhar e pensar da Era dos Descobrimentos. Tão abundante quanto efêmera (1555-1560), ela deu origem a um corpus documental de uma surpreendente diversidade e inspirou obras de grande qualidade literária. A aventura se alimentou de retalhos de tempos antigos, bebeu a desejos de Éden e de riquezas, repercutindo nos acontecimentos políticos e religiosos de então. Apesar do seu fracasso (ou talvez graças a ele), a França Antártica coloca o Brasil no centro de uma incessante modernidade: o encanto e o desencanto do mundo; o fluxo e refluxo entre as culturas; o ideal de liberdade; a violência e a tolerância; o arcaico e o contemporâneo; em suma, este “canibal” que descrevemos alhures e que cada um de nós carrega em seu foro interior.
A disputa do Novo Mundo
Os marinheiros franceses frequentavam a costa do Brasil desde o “Descobrimento” e, na esteira dos navegadores portugueses, frotas saídas de Honfleur e Dieppe iam comercializar o pau-brasil, ou a ibirapitanga, de cor vermelha, tão requisitado para a confecção de tinturas. Buscando a inserção no comércio de especiarias, os negociantes se contentavam com as costas do norte e do sul do Brasil, travando aqui e ali alianças com as populações locais, estabelecendo bases que os portugueses se empenhavam em destruir. Estes últimos tinham enorme dificuldade em fazer respeitar o monopólio concedido pelo Tratado de Tordesilhas, e o tráfico se faz importante durante a primeira metade do século XVI. A familiaridade entre franceses e ameríndios é comprovada por uma série de documentos: itinerários, relatos de viagem (entre outros, o de Gonneville), um glossário, testemunhos cartográficos, a voga das festas indígenas.
François I, cuja tirada insolente é bem conhecida, “o sol brilha para mim assim como para todos os outros: o que eu gostaria era de ver a cláusula do Testamento de Adão que me exclui da divisão do mundo”, apoia as pretensões de seus súditos. Ele chega mesmo a obter do papa Clemente VII uma interpretação mais flexível do Tratado de Tordesilhas: admite-se que a divisão do mundo assinada em 1494 concerne apenas às terras então conhecidas e não “as terras posteriormente descobertas pelas outras coroas”.
Apesar da operação de colonização lançada oficialmente em 1548 pela monarquia portuguesa, os enclaves franceses persistem. Ao sul, por exemplo, na capitania do Rio de Janeiro, as populações indígenas, sob o comando de seu chefe Cunhambebe, são aliadas dos franceses. O Almirante de Coligny, mais tarde chefe do partido protestante, defende a ideia de um estabelecimento fortificado na América do Sul, e a baía do Rio é o local perfeito. A obra assinala uma verdadeira reviravolta: o Brasil tornou-se negócio de estado e não mais uma atividade apoiando-se em financiamentos privados.
A experência francesa na Baía de Guanabara
Em maio de 1555, o cavaleiro de Malta Nicolas de Villegagnon deixa o porto do Havre. Os dois navios transportam seiscentos homens embarcados após uma campanha de recrutamento. A frota penetra a baía do Rio de Janeiro em meados de novembro e, temendo os índios, instala-se em uma ilhota exígua, desprovida de recursos, rebatizada com o nome de Coligny. A mão-de-obra ameríndia acode os colonos e, em um primeiro momento, a concórdia entre católicos e huguenotes é instaurada.
Ora, quando os franceses descobrem os Tamoio, seus anfitriões ameríndios dos quais eles dependem muito, a França Antártica se desfaz minada por disputas internas que prefiguram as guerras de religião que vão estourar na França em 1562. Villegagnon impõe uma disciplina de ferro, interdita a “licenciosidade” com os índios, reprime os espíritos rebeldes. Durante muito tempo protetoras, as tribos indígenas, atingidas por uma epidemia, mostram sinais de inimizade. Em fevereiro de 1556, uma parte dos colonos, entre os quais André Thevet, volta para a Europa. No mesmo ano, em plena crise espiritual, Villegagnon apela a Calvino que lhe envia de Genebra um pequeno cortejo de colonos. Eles desembarcam em 1557. Entre eles, Jean de Léry e ministros protestantes. A situação adquire então uma tonalidade irreal: enquanto é exposta a perigos em uma terra desconhecida, a colônia mergulha em desvairadas polêmicas teológicas. A discórdia explode no Pentecostes: Villegagnon rompe com os calvinistas após um debate sobre a eucaristia. O cavaleiro defende com firmeza o dogma enquanto que os protestantes rejeitam “este perverso herético desencaminhado da Fé” e se refugiam em terra firme, num local chamado “la Briqueterie”. De volta à França em 1558, após uma penosa travessia, os protestantes não tardam em relatar as crueldades cometidas contra os índios e os colonos.
Para se justificar, Villegagnon confia o governo do forte a seu sobrinho e volta para Paris em 1559. Pressionados pelos jesuítas, os portugueses, ombrados pelos índios aliados, preparam a ofensiva. Em 15 de março de 1560 a fortaleza é tomada e a aventura colonial se termina. Todavia, a resistência prossegue até 1567 e o desmantelamento não põe um fim à presença francesa. As incursões corsárias e o comércio ilegal continuam, e a memória da França Antártica inspira a experiência da França Equinocial.
Guerra panfletária e paixão crítica
O período dos franceses no Brasil deu origem a toda uma literatura. Se panfletos escarnecem sem demora a traição de Villegagnon (Richer), duas obras maiores fazem descobrir a riqueza e a singularidade do novo mundo.
Já em 1557 o frade franciscano André Thevet, futuro cosmógrafo do rei, publica Les singularités de la France Antarctique, um livro saboroso cujo sucesso é tão fulgurante quanto controverso. Ele oferece um quadro ilustrado dos recursos animais e vegetais, mistura maravilhas e traços culturais, dá uma visão idílica da natureza tropical saudada pelos poetas da Plêiade. É um dos primeiros monumentos etnográficos da Era dos Descobrimentos. Jean de Léry se empenha em contestar as mesquinharias e calúnias lançadas contra os genebrinos e responde com seu Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, publicado em 1578. O olhar é o de um observador privilegiado, impregnado de nostalgia. Léry se recorda da amizade dos selvagens, ressalta os costumes dos canibais, cujo modo de vida ele julga superior. Sucessivamente fascinado, terno e pessimista, ele analisa um mundo cuja complexidade dá origem a reflexões sobre o canibalismo comparado de todas as sociedades. Este “Montaigne dos viajantes” constrói, assim, uma reflexão de uma alta modernidade, saudada por Lévi-Strauss, que vê ali “o breviário do etnólogo”.
Uma ilha do Brasil: utopia e filosofia
Dominados pelo tema da barbárie e da civilização, do inferno e do paraíso, os debates suscitados pela experiência da França Antártica não cessaram de se multiplicar. O horror provocado pelo canibalismo — os trabalhos de Frank Lestringant demonstraram isso — penetra as polêmicas religiosas. Os índios da baía do Rio, galhofeiros e comedores de carne, abrem uma tradição que culmina, no século XVIII, no mito do bom selvagem. A guerra, a colonização, a imperfeição do conhecimento alimentam o relativismo de um Montaigne que, por sua vez, influencia autores tão diversos quanto John Locke, Pierre Bayle, Prévost, o abade Raynal, Diderot, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire. A crítica lançada pelas Luzes às intolerâncias vai beber dessas reflexões subversivas. E a experiência selvagem estimula o pensamento: de Claude Lévi-Strauss, de Pierre Clastres… Ela alimenta as ficções entre os dois lados do Atlântico: os românticos; os modernistas; autores contemporâneos que não cessam de reinventar a utopia.
Em resposta a Jean de Léry exaltando a acolhida dos antropófagos, e fazendo eco a Claude Lévi-Strauss – que, em Histoire du Lynx, mostrava que o pensamento mítico americano, ao contrário do pensamento ocidental nutrido de violência, reservava um lugar ao outro —, Jean Baudrillard vê no canibalismo a forma mais sutil, senão a mais acabada, de hospitalidade.
A Terra de Gonneville
Revelado parcialmente no século XVII pelo abade Jean Paulmier de Gonneville, o relato do capitão Binot Paulmier de Gonneville conheceu uma trajetória conturbada.
Após ter partido de Honfleur com destino às Índias Orientais em junho de 1503, o navio L’Espoir foi levado por uma tempestade até uma costa do Atlântico onde a tripulação permaneceu durante seis meses. Uma vez de volta, são e salvo mas tendo perdido todos os seus bens, o capitão registrou queixa junto ao escrivão do Almirantado de Rouen em 1505. Em 1663, o abade de Gonneville reproduziu o testemunho de seu antepassado de maneira tão truncada que era difícil determinar com precisão em que terra eles tinham chegado. Este relato cristalizou o desejo de império e o mito da terra austral. Em 1869, o sábio Charles d’Avezac revelou o documento original: um francês tinha ido ao sul do Brasil e um índio, por sua vez, desembarcara em terras normandas.
O relato ainda suscita dúvidas quanto à autenticidade e à veracidade da viagem, mas a história contada, feita de trocas e de amizade, é bela. É cativante o olhar sobre as sociedades amerínidas que a longa estadia permitiu melhor descrever, e as sequelas humanas dessa aventura são espantosas. Assim Essomericq, um dos dois índios carijó que o capitão embarcou em seu navio e que, apesar da sua promessa, ele não pode levar de volta à sua terra, deixou descendentes em solo normando. Um mito benfazejo, segundo Leyla Perrone-Moisés, apto a inspirar a atitude de hoje.
Uma festa brasileira
Em 1840, Ferdinand Denis publicou um relato ilustrado com uma gravura que contava minuciosamente a entrada solene do rei Henri II e de sua corte em Rouen em 1° de outubro de 1550. Foi montado um imenso cenário representando a terra brasileira com sua floresta, o corte e o transporte do pau-brasil, os animais e as frutas “ao natural”. Segundo os testemunhos, os espectadores adoraram ver as danças, os jogos e simulacros de combates aos quais se entregaram índios e marujos normandos, “todos igualmente nus, bronzeados e de cabeleiras revoltas”. E a atração principal do espetáculo: o ataque de uma nau portuguesa que no final é queimada.
Os índios foram hospedados em uma casa chamada Hôtel de l’Isle du Brésil, da qual foram conservados painéis esculpidos representando cenas do Novo Mundo. Não se sabe se os índios ficaram em terras normandas ou se puderam voltar para casa.
O espetáculo foi um imenso sucesso, e outras festas de silvícolas brasileiros e americanos se desenrolaram em Troyes em 1564, e em Bordeaux no ano seguinte.
Montaigne: “abarcamos tudo, mas abraçamos apenas vento”
Esta frase do capítulo “Dos canibais” (1580) anuncia o vibrante “Dos coches” (1588), dois dos mais célebres ensaios consagrados à descoberta e à exploração dos Novos Mundos. Em sua biblioteca, Montaigne lê os antigos e os modernos, entre os quais André Thévet e Jean de Léry. Além disso, ele tem um empregado que passou um período no Brasil na época da aventura antártica. Também já a primeira edição dos Ensaios consagra um capítulo aos canibais, de quem ele exalta a liberdade, a virtude e a generosidade. Assim como Jean de Léry, Montaigne observa que a crueldade não é apanágio destes comedores de carne chamados de “bárbaros, em relação às regras da razão, mas não a nós, que os ultrapassamos em toda a espécie de barbárie”. Sua fórmula “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra” reflete a instabilidade de todas as certezas. Contrastando com a visão feliz da infância da humanidade, o capítulo “Dos coches” condena as injustiças da colonização.
Montaigne assinala a crise da consciência europeia e anuncia uma vasta literatura sobre os costumes, as formas de organização política e o ideal de liberdade.
Mapas, estampas e gabinetes de curiosidades
Bem cedo os registros da vida selvagem já tinham invadido os mapas, gravuras e ambientes. A natureza luxuriante, a flora e a fauna oscilavam entre reminiscências clássicas e notas realistas: esplêndidos papagaios, macacas e saguis, árvores e frutos, animais estranhos. A nova humanidade se refletia no corpo nu dos indígenas, na pintura da guerra e da cena canibal.
As representações cartográficas dão origem a sonhos de ilhas e de arquipélagos, a projeções fantásticas. As suntuosas cartas ornadas com iluminuras do Atlas Miller (1519) apresentavam os corpos trigueiros dos ameríndios, adornados com plumas e armados de flechas, cortando a madeira e correndo em direção às naus. A cartografia torna-se mais precisa graças às explorações, como mostra a obra de Guillaume Le Testu , que fez, em 1551, uma viagem de reconhecimento. A inspeção continua com os mapas de Reinel, de Jacques de Vau de Clay, dos Teixeira.
A efêmera colônia dá origem a um poderoso imaginário. E todo esse conjunto será retomado no compêndio iconográfico de Théodore de Bry no fim do século XVI. A paixão pela coleção, aliás, alimenta os gabinetes de curiosidades. O de um André Thevet, ou o de Montaigne, que contém redes de dormir, tacapes, bastões de ritmo.
Fonte: BN Digital
Formado em Sistemas de Informação pela FAETERJ, carioca de coração, apaixonado por teologia, tecnologia, matemática, geografia, história e pela sociedade em geral.