Há mais de 1,4 bilhão de cabeças de gado no mundo e, juntos, liberam 65% de todos os gases de efeito estufa da agropecuária. Substância preta, semelhante ao carvão, está liderando uma revolução silenciosa em um esforço para reduzir as emissões de metano das vacas e para que o solo absorva mais carbono.
Em um dia quente de verão, é difícil ignorar o cheiro de estrume em uma fazenda de gado na Austrália Ocidental. Mas não por muito tempo: um grupo de besouros de esterco, conhecidos como rola-bosta, trabalha duro para enterrar o estrume das vacas no solo.
Quando está calor, pode demorar menos de uma hora para os besouros eliminarem completamente os excrementos da superfície do pasto. Em outras ocasiões, quando está mais frio e os besouros são menos ativos, pode levar até duas semanas.
De qualquer maneira, os insetos trabalham com afinco até que o único odor presente no ar seco do verão seja o cheiro de eucalipto das árvores.
O excremento que esses besouros em particular estão enterrando não é um excremento comum. Nesta fazenda perto de Manjimup, no sudoeste da Austrália, as fezes dos animais são ricas em biochar (ou biocarvão), basicamente um carvão vegetal produzido por meio de um processo de cozimento lento, que é adicionado à ração do gado.
Essa substância preta, semelhante ao carvão, está liderando uma revolução silenciosa nesta região da zona rural da Austrália, em um esforço para reduzir as emissões de metano das vacas e para que o solo absorva mais carbono.
O biochar é uma ferramenta para os agricultores reduzirem o polêmico impacto ambiental do gado. À medida que as vacas digerem seus alimentos, elas liberam metano, um gás de efeito estufa 25 vezes mais potente que o dióxido de carbono.
O metano deixa o trato digestivo dos animais pelas duas extremidades: grande parte por eructação (arroto) e uma pequena parte por flatulência. Uma vez fora do sistema digestivo, o esterco continua a liberar uma quantidade reduzida de metano.
Atualmente, há mais de 1,4 bilhão de cabeças de gado no mundo e, juntos, liberam 65% de todos os gases de efeito estufa da agropecuária. Os esforços para reduzir as emissões de metano das vacas vão desde vacinas até alimentá-las com algas.
Agora, há um interesse crescente em saber se a adição de outra substância à dieta das vacas pode reduzir as emissões de metano: o biocarvão.
Essa substância preta quebradiça é muitas vezes produzida como subproduto da silvicultura e de outras indústrias. É criada quando a biomassa é colocada em condições de alta temperatura e baixo oxigênio, e passa por um processo chamado pirólise.
A dieta de biocarvão para vacas também tem uma longa e ilustre história. No século 3 a.C., Catão, o Velho, escreveu que se deveria dar “três pedaços de brasa de carvão” ou carvão vegetal aos gados doentes. No entanto, ele também recomendou dar às vacas doentes 1,5 litros de vinho e uma série de outras substâncias questionáveis.
Estudos mais recentes mostraram que pode haver alguma sabedoria no primeiro pensamento de Catão, o Velho. Em 2012, um grupo de pesquisa no Vietnã descobriu que a adição de 0,5% a 1% de biochar na alimentação dos gados poderia reduzir as emissões de metano em mais de 10%, enquanto outros estudos identificaram reduções de até 17%.
Pesquisas sobre gados de corte nas Grandes Planícies dos EUA revelaram que o acréscimo de biochar na alimentação dos animais reduz as emissões de metano das vacas de 9,5% a 18,4%. Dado que o metano constitui 90% das emissões de gases de efeito estufa da pecuária, isso pode reduzir consideravelmente o impacto ambiental do gado.
O mecanismo que faz com que o biocarvão seja responsável por essas reduções, no entanto, não é bem compreendido. Uma das teorias é que ele “adsorva” moléculas de metano ou as mantenha em sua superfície. Outra hipótese é que o biochar favoreça o crescimento de certas comunidades microbianas no microbioma da vaca, resultando em uma digestão mais eficiente.
Para entender como o biocarvão reduz as emissões de metano das vacas, e em que proporção, são necessários mais estudos, escreveu Claudia Kammann, da Universidade Hochschule Geisenheim, na Alemanha.
Nesta fazenda perto de Manjimup, o criador de gado Doug Pow participa de pesquisas sobre biochar há vários anos. Ele obtém seu biocarvão como subproduto de um produtor local de silício.
Ele foi atraído inicialmente não pelo potencial do biochar de reduzir as emissões de metano do seu rebanho, mas como uma maneira de aumentar o sequestro de carbono no solo. Havia a dupla perspectiva de armazenar carbono e melhorar a saúde do solo.
“Devido à natureza altamente porosa e à área de superfície elevada do biochar, ele melhora a capacidade do solo de reter mais água”, explica Bhawana Bhatta, professora de ciências do solo da Universidade de Melbourne, na Austrália.
“A fina rede de poros no biochar dá espaço para os microrganismos do solo viverem. Isso aumenta a diversidade microbiana no solo.”
A princípio, Pow ficou sem saber como faria para colocar o biocarvão em seus pastos. Geralmente, é necessário um maquinário especializado grande e caro.
“Pensei, não possuímos equipamentos agrícolas de grande porte e meus portões não são largos o suficiente”, relembra.
Foi então que Pow se perguntou: seria possível colocar o biochar no solo com pouco ou nenhum custo, usando seu rebanho para distribuí-lo? Afinal, os animais vagavam pelos pastos o dia inteiro, e seu esterco era espalhado generosamente sobre ele. Parecia um sistema de distribuição feito sob medida.
Mas uma vez que o estrume enriquecido com biochar havia sido espalhado pela terra, ele se deparou com um desafio adicional. Como esse esterco entraria no solo?
O esterco é de certa forma incompatível com a paisagem australiana. Foram os primeiros colonos europeus que introduziram vacas, ovelhas e outros ruminantes na região. Os cangurus e outras espécies nativas defecam pequenos grânulos fibrosos, com os quais os besouros rola-bosta nativos da Austrália coevoluíram para lidar. Mas esses besouros ignoram os excrementos pastosos e úmidos produzidos pelas vacas.
Pow teve que procurar besouros rola-bosta bovinos, que foram introduzidos pela primeira vez na Austrália na década de 1960, mas continuam sendo relativamente raros.
Depois de buscar a ajuda de um entomologista para entender se ao alimentar seu gado com biochar poderia prejudicar as larvas de besouro que viviam no esterco, Pow foi em frente e fez um teste. Para documentar o progresso, ele se juntou a pesquisadores de biocarvão, como Stephen Joseph, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália.
Atraído pela adição de melaço ao biochar, o gado de Pow obedientemente devora sua ração enriquecida e produz seu esterco. Na sequência, os besouros começam a trabalhar – em pares. O macho leva o esterco para os besouros fêmeas que cavam um túnel no solo.
Toda vez que um besouro remexe o solo, ele também traz à superfície terra nova com altos níveis de fósforo, que atua como fertilizante natural.
Estudos realizados durante um período de três anos na fazenda de Doug revelaram um aumento do carbono orgânico total e da fertilidade do solo desde o início. A pesquisa mostrou ainda que houve uma melhora na retenção de água no solo e um aumento na quantidade de carbono que estava sendo retida.
No geral, Pow viu um “salto quântico” na qualidade de suas terras agrícolas, à medida que se tornaram economicamente mais viáveis e produtivas.
“Estamos fazendo a nossa parte para recriar o solo de maneira positiva, com benefícios de longo prazo para o mundo”, diz.
“Foi uma maneira muito engenhosa de colocar biochar no solo sem dispêndio de capital”, avalia Kathy Dawson, diretora-executiva do Warren Catchment Council, organização sem fins lucrativos que auxilia no gerenciamento de recursos naturais na região sudoeste de Austrália Ocidental.
O biochar é normalmente uma forma muito estável de carbono, diferentemente da biomassa que é deixada para apodrecer na superfície, liberando dióxido de carbono no processo. Uma vez enterrado no solo, o biocarvão pode permanecer lá por centenas de anos.
Acredita-se também que a presença de biochar estabiliza o carbono orgânico no solo, diz Bhatta, resultando em um aumento do sequestro de carbono.
A ideia de enterrar essa substância no solo foi proposta como um promissor sumidouro de carbono para enfrentar as mudanças climáticas, mas a quantidade necessária para obter um efeito significativo teria que ser gigantesca.
Mas, dado o interesse nos demais benefícios ambientais da substância, será que outros fazendeiros vão adotar o sistema de biochar e besouros rola-bosta? Tem havido uma certa hesitação devido a questionamentos sobre quão rentável a prática é para os agricultores.
Os benefícios para a saúde do solo também dependem do tipo de biocarvão usado. Pow acredita que seria necessária uma legislação e incentivos adicionais, como créditos financeiros, para incentivar uma adoção mais ampla de práticas agrícolas com baixa emissão de carbono. Ele tem esperança de que o sistema que desenvolveu inspire mais agricultores com o tempo.
Embora a pecuária tenha um grande impacto ambiental, também é um meio de subsistência para cerca de 1,3 bilhão de pessoas em todo o mundo. E a combinação improvável de biocarvão e besouros de esterco pode ser uma maneira de os agricultores reduzirem sua contribuição para a crise climática, enquanto colhem os benefícios de um solo mais saudável.
Fonte: Terra
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