Ao se enfocar a questão do índio no Brasil em geral, ou em qualquer outro recanto em nosso imenso país, sempre se encontrará desvios retóricos para se dizer que estamos diante de um problema insolúvel.
De um lado, se situam pessoas e instituições que veem o índio como criatura humana e seus territórios como espaço essencial à sua sobrevivência material e espiritual; de outro, forças poderosas que sistematicamente se opõem a qualquer medida que contrariem interesses de grupos privados também poderosos e que, por isso mesmo, não arredam os olhos das terras indígenas.
Em todo 19 de abril – Dia do Índio – a grande imprensa nacional relembra à sociedade que no Brasil ainda existem tribos indígenas que abrigam indivíduos vivendo na Idade da Pedra. Passado esse dia, os índios caem no esquecimento dos mais de 200 milhões de brasileiros, ignorando-se, por exemplo, que “todo dia é dia de índio” – como assim o exaltaram e cantaram Jorge Benjor e Tim Maia, e como assim pensam muitos outros brasileiros –, que se tratam de indivíduos que cultivam o ser e não o ter e que, afinal, vida de índio em seu lado mais puro e mais lúdico é de dar inveja aos cidadão e cidadãs ditos civilizados.
Em meus escritos sobre o índio ao longo desses últimos anos – que resultaram em um ensaio ainda inédito, no qual abordo, sobretudo, o sofrimento e dor que nós, brancos, infligimos a esses seres humanos ao longo dos mais de cinco séculos de nossa história – pareço repetir o óbvio, ou seja, pareço querer insistentemente mostrar que vida de branco em nada combina com vida de índio.
E não tem mesmo como combinar, pois, como dissera sabiamente Orlando Villas Bôas antes de ir para a Terra dos Sem Mal (segundo as crenças indígenas, para onde vão as pessoas boas), não há lugar para o índio na sociedade dos brancos, porque a violência que se comete contra ele decorre do desconhecimento que de modo geral têm as pessoas sobre o que é vida de índio e sobre sua imensa contribuição à relação respeitosa que todo indivíduo deve ter com a natureza e tudo o que ela abriga – as águas, as plantas e os animais.
Não obstante a estupidez de formas de pensar, como a dos que ainda acham que índio bom é índio morto, continuo acreditando no que deixou como grande lição de humanismo e de respeito à vida humana, o Marechal Rondon: morrer, se preciso for, matar, nunca. Rondon certamente se convencera de que diante do inevitável – os contatos entre sociedades de diferentes níveis de organização política e social, no que geralmente resulta em prejuízos para aquelas de nível de organização social mais vulnerável, a dos índios –, haveria que ter ao menos uma postura honrosa, ética.
Repetindo o que em artigo anterior coloquei como premissa, acredito que é dever de todo cidadão de boa índole, e sobretudo do historiador, não fechar os olhos para as injustiças infringidas ao índio brasileiro desde que aqui chegaram os primeiros descobridores.
Isto serve, talvez, para mostrar às pessoas de todas as classes sociais que, por mais que se queira edulcorar a pílula, o índio em nossa terra sempre foi tratado como um empecilho à conquista e ocupação do território e que, como tal, tinha que ser combatido ou simplesmente eliminado, como se elimina um animal selvagem.
Ainda hoje, a maioria dos brasileiros – inclusive pessoas esclarecidas e conhecedoras dos direitos fundamentais do homem – continua pensando que, por serem donos, legítimos, aliás, de imensas áreas de terras em reservas e parques indígenas que poderiam estar produzindo riqueza e abrigando milhões de camponeses sem terras nesse imenso país, o índio é só empecilho e estorvo para os brasileiros.
Se esquecem de que, ao contrário do que acontece entre os brancos, donos de imensos latifúndios, os territórios indígenas não pertencem a nenhum índio em particular, mas a todos os seus ocupantes indistintamente, que tudo é patrimônio comunitário, sem escritura em cartório e sem título de propriedade e que na sociedade tribal o único bem particular que o índio possui é a maloca, em que ele e sua família vivem. Todo o resto, pertence a todos, indistintamente. Tudo tão simples.
Os estereótipos negativos que se constroem acerca do índio – “vagabundo”, “preguiçoso”, “indolente”… – advêm certamente do desconhecimento que se tem de seus hábitos e costumes sociais e culturais. Na verdade, vida de branco e vida de índio são mesmo muito diferentes, como também diferentes são seus os modos de organização social: enquanto a sociedade indígena é mais simplificadamente organizada, porque fundada em hábitos e costumes milenares – sem regras e leis escritas –, a outra (a dos brancos) é mais rígida, mais estratificada e mais formalmente codificada; enquanto em uma o processo de aprendizagem – a educação contínua – é mais natural, pois jovens e menos jovens se espelham nas pessoas mais experientes em seu processo de desenvolvimento psíquico e social, na outra, ao contrário, o processo educativo é mais complexo, porque cercado de muitas formalidades e regras de conduta e de comportamento social que, às vezes, mais constrangem que educam.
Em seu artigo 214, entre outras recomendações, a Constituição Federal de 1988 destaca que nossa educação deve contribuir para a erradicação do analfabetismo, para a formação para o trabalho e para a formação humanística, científica e tecnológica do país.
A educação indígena, por ser mais natural, dispensa os formalismos da educação burguesa. Ou melhor, ela é menos carregada de estereótipos sociais e de métodos, digamos, didático-pedagógicos, imaginados pelos grandes pedagogos e educadores de nosso tempo. Em suma, o índio, em sua forma natural de organização social, que tem na ancestralidade e no respeito às tradições os paradigmas de conduta e de comportamento individual e coletivo, não precisa da educação formal dos não-índios.
Aliás, sempre se encontram desculpas para ignorar costumes ancestrais ou justificar ações que violentam o modus vivendi dos índios. Quando isto acontece, alerta o pesquisador e professor Carlos Rodrigues Brandão, essas ações não passam de uma invasão: “invasão cultural, simbólica, ideológica […], que faz com que toda a atividade pedagógica sirva para fazer o que é preciso, para que as pessoas sejam ou se tornem ‘iguais’ sem a igualdade, uniformes na sociedade, na obediência, no respeito e na veneração aos valores e símbolos de valores que, na verdade, contém os interesses de pequenos grupos, tão minoritários quanto perigosos […] Por seu lado, na comunidade ou na tribo, existe um mundo construído e, mais que isto, um mundo social ativamente em construção”.
Na prática, isto é o que quis nos mostrar Orlando Villas-Bôas, que – diante do que realmente era inevitável (a perda da identidade do índio face ao nível superior de organização política e, sobretudo, militar do Estado e da sociedade civil) – setenciara: “o convívio tem-nos mostrado que, levando em conta seus valores, sua visão de mundo, a formação de sua individualidade, ele só sobrevive em sua própria cultura. Não há lugar para o índio na sociedade moderna”.
Essa filosofia e essa visão antropológica e cultural do índio são uma das últimas contribuições do sertanista ao entendimento e ao tratamento que se deve dar à questão indígena no Brasil. E ele tem razão, porque se no resto do mundo as sociedades indígenas se encontram quase completamente aculturadas e desintegradas de seu meio ambiente natural e social, no Brasil tribos ainda não contatadas – mas de que se tem notícia de sua existência –, ainda vivem como na Idade da Pedra, fechadas em seu mundo social e ambiental, aí praticando atividades e rituais religiosos há milhares de anos.
O que fazer com relação a elas?
Deixá-las lá, isoladas, em seu invólucro sagrado: o seu território.
Na verdade, como asseveram antropólogos como Sidney Possuelo, o ideal seria não contatar, ou seja, não interferir jamais no modo de vida indígena, pois, diz, “o primeiro contato é como parir uma nova gente”. Esta frase merece muitas interpretações e contém muitas lições de antropologia, psicologia e humanismo: ora, a partir do momento em que tribos até então isoladas do mundo exterior em que vivem são contatadas, inicia-se imediatamente um processo de desagregação do modo de vida original, pois o homem branco sempre leva consigo males físicos, sociais e morais, como as doenças “brancas” – gripe, sífilis, tuberculose, varíola, sarampo, aids, contra as quais o organismo do índio não tem nenhuma defesa orgânica –, os vícios de toda ordem – principalmente o alcoolismo, o tabagismo e as drogas – e condutas sociais condenáveis pelos costumes indígenas – como, entre outras, a interferência nas relações entre o índio e sua sociedade, ou melhor, interferência em suas formas de organização social e religiosa, em seus tabus, relações essas bem diferentes das que vigem na sociedade civil.
O historiador norteamericano Geoffrey Blainey em seu livro Uma breve história do mundo faz relatos apocalípticos sobre a mortandade causada entre os incas por doenças trazidas pelos espanhóis ao Novo Mundo – principalmente a varíola, que, à época do descobrimento da América, se alastrava na Europa. Como se sabe, milhões de indivíduos indígenas foram dizimados não pelas armas dos descobridores, mas pelas doenças que eles trouxeram consigo. Cinco séculos depois, isto acontece da mesma forma, porque “missionários”, garimpeiros, madeireiros, simples posseiros, enfim, invasores de toda ordem e desordem portadores de dias ruins para os índios, levam para as aldeias os males do século XXI.
Retomando aqui palavras por mim expressas em um primeiro artigo sobre o índio, veiculado no jornal O POPULAR de 26/04/2006, à guisa de conclusão, gostaria de poupar adjetivos ao enfocar esta questão, mas, ao que parece, isto é impossível. Ora, assim que chegaram os descobridores, como nos relata Darcy Ribeiro em seu último legado ao entendimento da sociedade brasileira (O povo brasileiro.
A formação e o sentido do Brasil), aos índios só restou o deslumbramento inicial, pois, as concepções diferentes que ambos os lados tinham do mundo, da vida, da morte e do amor se chocaram cruamente. Certamente, se pudessem, os milhares de índios que por esse Brasil afora vivem como autênticos outsiders nas periferias de muitas cidades, gostariam que não tivesse acontecido, como relatou Darcy Ribeiro, o que foi presenciado pelos seus ancestrais quando, nas praias da Bahia, desembarcaram os descobridores: “os índios, esplêndidos de vigor e de beleza, viam, ainda pasmos, aqueles seres que saíam do Mar”.
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