Medicamentos e Meio ambiente: soluções individuais, problemas coletivos
12 de março de 2018

Você sabia que o uso intensivo de medicamentos tem transformado resíduos destes compostos em poluentes comuns nos ambientes aquáticos?

As consequências ambientais deste tipo de poluição ainda são pouco conhecidas, mas diversos estudos já indicam efeitos na reprodução e mobilidade de organismos, mesmo em baixas concentrações no ambiente. Mas devemos pensar: como os medicamentos que eu consumo chegam até o ambiente? Isso realmente é uma questão que envolve toda a sociedade.

A entrada de medicamentos no ambiente via lixo comum pela população é uma forte contribuição para contaminação ambiental. Precisamos pensar que todos nós temos uma cota de contribuição para que esses medicamentos cheguem até o ambiente e que podem voltar para nós pela água potável. Portanto, o uso indiscriminado, desde a automedicação até o descarte indevido, precisa ser controlado, e isso é uma atitude que pode ser repensada por cada um de nós.

A população mundial tem aumentado e, com isso, o consumo de medicamentos se torna maior. Além disso, o aumento da expectativa de vida dos seres humanos e a consequente inversão das pirâmides de idade populacionais têm aumentado proporcionalmente ainda mais o consumo de medicamentos.

As pessoas idosas consomem mais medicamentos, uma vez que o organismo já não funciona tão bem e o índice de doenças crônicas é mais alto nesta população. No Brasil, esse aumento é nítido: entre 2002 e 2016, a população aumentou de 180 para 205 milhões de pessoas, com maior percentual proporcional de idosos; no mesmo período, a venda de medicamentos passou de 500 milhões de unidades (caixas) para 3,5 bilhões, segundo dados do IBGE e do Sindicato das Indústrias Farmacêuticas (Sindusfarma).

Por sua vez, esse aumento de consumo aumenta a geração de resíduos. Uma vez no ambiente, estes resíduos se comportam como contaminantes e podem ser tóxicos a diversos organismos, inclusive a espécie humana. Os seres humanos ficam expostos aos resíduos de fármacos por meio da água potável e via alimentação, como os peixes. Nesse sentido, os resíduos de medicamentos também podem poluir águas superficiais e subterrâneas, solos e ar.

Medicamento na água é problema

Dezenas de frascos de medicamentos jogados em estrada no Paraná. Foto: Câmara Municipal de Guaíra.

Os resíduos de medicamentos atingem os corpos hídricos de várias maneiras: pelo descarte incorreto de medicamentos, uso intensivo de medicamentos na medicina veterinária e a não remoção completa dos resíduos de medicamentos nas estações de tratamento.

Após sua utilização, seja na medicina humana ou na veterinária, os medicamentos são excretados pelos organismos diretamente para o ambiente, sendo transportados para os corpos hídricos, ou, quando as excreções são coletadas e tratadas, passam por estações de tratamento de esgoto (ETEs). Nestas estações, normalmente os resíduos de medicamentos não são removidos completamente devido à tecnologia ineficiente, e assim, também acabam alcançando o ambiente.

As águas contaminadas pelos resíduos de medicamentos podem ser utilizadas para produção de água potável. Nas estações de tratamento de água (ETAs), a mesma situação pode acontecer, ou seja, devido a tecnologias ineficientes, os resíduos de fármacos podem ser encontrados na água potável.

Todos os medicamentos são formulados para provocar um efeito, assim, eles podem atravessar as barreiras biológicas dos organismos para chegar até o órgão afetado. Logo, devemos pensar que no ambiente eles também podem resistir a barreiras e a degradação, sendo persistentes. Além disso, algumas destas substâncias apresentam tendência cumulativa, ou seja, elas podem acumular pela cadeia trófica, sendo essa uma via de contaminação para os seres humanos – ao se alimentar de outros animais. O descarte indevido de medicamentos ou das suas embalagens também resulta em uma importante via de contaminação ambiental. Uma visão esquemática desse conjunto de processos é mostrada na Figura 1, adiante.

Figura 1. Vias de entrada e destino dos resíduos de medicamentos no ambiente.

Apesar da problemática envolvida, a detecção e quantificação de medicamentos no ambiente ainda são restritas em determinados países. A detecção dessas substâncias só foi possível devido aos avanços dos métodos analíticos, já que geralmente são encontrados no ambiente em baixas concentrações, na ordem de ng L-l e µg L-1 (Figura 2). Normalmente, nos rótulos de bebidas que ingerimos diariamente, vemos as concentrações em miligrama por litro, o que significa que estamos falando de concentrações de mil a um milhão de vezes menor do que isso.

Figura 2. Concentrações ambientais de diversos medicamentos reportadas em águas superficiais de diferentes países (Brasil, Canadá, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos).

Porém, não podemos nos enganar, mesmo em baixas concentrações, alguns estudos já apontam efeitos tóxicos dessas substâncias em alguns organismos aquáticos. Os hormônios são capazes de causar alterações sexuais, como, por exemplo, hermafroditismo e feminização em peixes. O Ibuprofeno (terceira droga mais popular do mundo!) foi capaz de alterar os padrões de reprodução de peixes em concentrações detectadas no ambiente. O antidepressivo Fluoxetina demonstrou ser capaz de alterar o comportamento dos peixes na fuga de predadores. Estas são somente algumas consequências já evidenciadas em laboratório, existem vários estudos com outros organismos e outras substâncias, mas ainda há muito que fazer.

Além dos efeitos isolados, estudos têm demonstrado que estes compostos podem ter efeitos sinergéticos, isto é, duas ou mais substâncias juntas podem potencializar seus efeitos. Por exemplo, os anti-inflamatórios ibuprofeno e diclofenaco podem aumentar ainda mais a mortalidade de Daphnia magna(microcrustáceo). Assim, a preocupação se agrava, uma vez que essas substâncias são sempre encontradas no ambiente em misturas. Além disso, precisamos pensar que a introdução no ambiente aquático de substâncias químicas sintéticas envolve uma enorme variedade de compostos e os efeitos sinérgicos podem ocorrer – inclusive com outras classes como metais pesados e pesticidas. Outra questão é que a entrada dos medicamentos é constante no ambiente e os organismos ficam expostos de forma contínua. Ainda sabemos pouco sobre as consequências que podem ocorrer à longo prazo e os efeitos não são detectados em bioensaios de curto período.

A legislação e a má gestão

No Brasil, o descarte indevido de medicamentos é consequência de um conjunto de fatores relacionados à má gestão, ausência de fiscalização farmacêutica e leis mais rigorosas. Normalmente, os pacientes não podem adquirir o número exato de comprimidos exigidos pelo tratamento, o que resulta em descarte dos medicamentos não utilizados. Além disso, temos o problema da automedicação, um mau hábito que resulta, muitas vezes, em um aumento desnecessário do consumo. Ainda assim, não há legislação brasileira de obrigatoriedade por parte dos estabelecimentos para apresentar pontos de recolhimento dos medicamentos em desuso ou vencidos, o que resulta em descarte incorreto em lixo comum ou nas redes de esgotamento sanitário.

Iniciativas importantes, bons exemplos devem ser seguidos!

Ibuprofeno e diclofenaco podem aumentar ainda mais a mortalidade de Daphnia magna (microcrustáceo). Foto: Wikipédia.

No Brasil, podemos encontrar algumas iniciativas de descarte correto de medicamentos. O estado de São Paulo, por exemplo, estabeleceu uma parceria entre prefeitura e empresas privadas para o recolhimento de medicamentos em supermercados e farmácias. A empresa Brasil Health Service possui o “Programa Descarte Consciente” que apresenta estações coletoras em alguns estabelecimentos participantes das regiões Nordeste, Sul e Sudeste. Ainda podemos citar programas como o “Papa Pílula”, realizado pelo Serviço Social da Indústria de Santa Catarina. Estas atividades são imprescindíveis para auxiliar a população em relação ao descarte correto dos medicamentos. Além destas iniciativas, podemos encontrar no Brasil, outras localidades que recorreram também a implementação de sistemas de coletas, mas desta vez fixados em lei, são os casos do Acre, Ceará, Distrito Federal, Juiz de Fora, Paraíba, Paraná e Rio Grande do Sul.

Outros países apresentam exemplos do uso de medidas bem-sucedidas, mostrando como uma correta gestão torna possível a logística reversa e a responsabilidade compartilhada dos resíduos de medicamentos. A Itália foi o primeiro país da Europa, a estabelecer um sistema de coleta de medicamentos na década de 70 com a criação da empresa Assinde Servizi. A França apresenta o sistema de coleta de medicamentos vencidos denominado Cyclamed, o qual obriga as indústrias a eliminarem os resíduos de embalagens domésticas que coloca no mercado. O Canadá possui Post-Consumer Pharmaceutical Association, uma organização sem fins lucrativos que desde 1999 realiza coletas e conta com o apoio de empresas de pesquisas farmacêuticas.

Olhando para o futuro… um salto para o futuro dos medicamentos no ambiente

Os efeitos que são reportados em organismos aquáticos e terrestres já são suficientes para demonstrar que a preocupação com a saúde humana também deve existir. E o que nós, como cidadãos, podemos fazer? Uso consciente de medicamentos. Evitar a automedicação e seguir corretamente as orientações das prescrições é fundamental. Além disso, podemos nos conscientizar e cobrar das nossas prefeituras um local para disposição de medicamentos vencidos e/ou não utilizados. Precisamos investir mais tempo em maneiras de prevenir que estas substâncias cheguem ao ambiente. Algumas formas de se prevenir são: a questão de conscientização individual, divulgação da problemática, trabalhos de educação ambiental envolvendo descarte correto, adequação da legislação e investimento em fiscalização. Estas medidas ajudarão no desenvolvimento de cidadãos mais críticos, que reivindiquem e cobrem medidas mais eficientes.

Ainda assim, precisamos de mais estudos de detecção ambiental, de efeitos destes resíduos em organismos para determinar concentrações legais de descarte, assim como estudos que ajudem na divulgação desta problemática. Não menos importante é o investimento em técnicas eficientes de remoção destes compostos das estações de tratamento e criação de medicamentos que degradam facilmente no ambiente. Todos devemos pensar que estas substâncias vão para o ambiente, portanto, devemos certificar que elas sejam menos tóxicas possível.

 

Gabrielle Rabelo Quadra, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Rafaela dos Santos Costa, mestre em Dinâmica dos Oceanos e da Terra pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Helena de Oliveira Souza, mestre em Ciências Ambientais e Conservação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Marcos Antonio dos Santos Fernandez, doutor em Química pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor associado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).