Extinção da Renca por meio de decreto é inconstitucional
11 de setembro de 2017

A Reserva Mineral de Cobre e seus Associados (Renca) foi criada pelo Decreto 89.404/1984. Esse instrumento normativo autorizou com exclusividade a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) a realizar pesquisa mineral na área, que corresponde ao tamanho da Dinamarca, situando-se na divisa sul e sudoeste do Amapá com Noroeste do Pará, em plena floresta amazônica. Concluída a pesquisa pela Empresa Pública, pode ser concedida outorga para a exploração de minérios à iniciativa privada, desde que preenchidos inúmeros requisitos estabelecidos pelo decreto.

Trata-se de Espaço Territorial Especialmente Protegido em razão de sua localização, qual seja, o conhecido “Pulmão do Mundo”. A mineração é potencialmente causadora de significativos danos ambientais, tanto em situações regulares, pelo tipo da atividade desenvolvida, quanto em situações anormais, frente a acidentes como o de Mariana. Aliás, a partir do derramamento de lama que consistiu em desastre sem precedente, esperava-se que o poder público adotasse medidas de maior proteção da natureza, mas o que temos visto é exatamente o oposto.

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 Em 27 de maio deste ano, publiquei nesta ConJur a coluna “Leis ambientais estão sendo modificadas contrariando o interesse público”, quando critiquei as Medidas Provisórias 756 e 758, encaminhadas ao Congresso Nacional para flexibilizar a proteção ambiental de grandes espaços na Amazônia Legal. As propostas legislativas foram muito questionadas tanto pela forma com que o tema foi tratado (MPs) quanto por seu conteúdo.

Agora no final de agosto, o presidente da República Michel Temer (PMDB) foi além na forma utilizada: de medida provisória (que é remetida ao Congresso), publicou os Decretos 9.142/2017 e 9.147/2017, por meio dos quais extinguiu a Renca sem manifestação antecedente ou posterior do parlamento. Poucos dias depois, decisão liminar da Justiça Federal do Distrito Federal suspendeu todo e qualquer ato administrativo tendente ao fim estabelecido pelos Decretos Presidenciais sem a observância do artigo 225, § 1º, III, da Constituição.

Realmente, o ponto fulcral está na inobservância do artigo 225, § 1º, III, da CF, que tem a seguinte redação:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (grifei)

Percebe-se, assim, que a CF não estabeleceu o modo de instituição dos espaços territoriais especialmente protegidos, que podem ser criados por ato do executivo ou do legislativo, mas o constituinte resolveu dificultar a redução ou a supressão desses locais com características especiais, possibilitando-as desde que por ato do parlamento.

A finalidade é não permitir que áreas por vezes estabelecidas somente a muito custo, precedidas de estudos técnicos e consulta popular, e estruturadas com plano de manejo, órgão gestor, conselho consultivo/deliberativo, sejam desconstituídas por um “canetaço”.

A Lei 9.985/2000 regulamentou o dispositivo constitucional acima transcrito, reforçando o seguinte:

Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.

§ 7º A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.

Essas normas têm eficácia em relação à legislação precedente à Constituição Federal e à Lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC – Lei 9.985/2000). A Constituição recepcionou as UCs já existentes, submetendo-as às normas da própria CF e à legislação futura aplicável à espécie. Tanto é assim que a Lei do SNUC estabeleceu a avaliação e recategorização, nos seguintes termos:

Art. 55. As unidades de conservação e áreas protegidas criadas com base nas legislações anteriores e que não pertençam às categorias previstas nesta Lei serão reavaliadas, no todo ou em parte, no prazo de até dois anos, com o objetivo de definir sua destinação com base na categoria e função para as quais foram criadas, conforme o disposto no regulamento desta Lei.

Há, no caso, outros aspectos a serem ponderados.

A imensa área da Renca é extremamente rica em cobre, ouro e em outros minérios de alto valor econômico; no seu interior habitam duas tribos indígenas; o local comporta ainda outras nove unidades de Conservação; parte da Renca está situada na fronteira entre países.

O decreto analisado estabelece uma diferença de tratamento entre a área onde há ou não sobreposição com outras UCs e terras indígenas demarcadas. Nas primeiras, impôs maiores exigências para a atividade minerária.

Porém, essa cautela não afasta a possibilidade de danos nesses locais mais protegidos. Isso porque o negócio da mineração acarreta consequências como desmatamentos, poluição das águas, conflitos fundiários e explosão demográfica. Certamente o deslocamento de muitos trabalhadores para a região possibilita a mineração ilegal nas áreas que permanecem protegidas além da Renca. Dentro da Floresta Amazônica, onde não há limites físicos bem definidos nem fiscalização efetiva, é natural projetar a ampliação da ação ilegal e a ocorrência de conflitos fundiários entre os trabalhadores e os índios.   

Outrossim, se a Renca está em parte localizada em faixa de fronteira e em terras indígenas, é conveniente lembrar do artigo 176, § 1º, da CF:

Art. 176. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

Então, toda e qualquer especulação de que será permitida irrestritamente a mineração na área ocupada pela Renca por empresas estrangeiras encontra restrições de natureza constitucional e, também, infraconstitucional, como na Lei n. 6.634/79, que trata da faixa de fronteira e a define na extensão de 150 Km de largura paralela à linha divisória entre o Brasil e outro país.

No último dia de agosto, o governo federal se rendeu às pressões da mídia, de artistas, ambientalistas, parlamentares, sociedade civil e suspendeu os atos anteriormente anunciados, que estavam obstaculizados pela liminar de primeiro grau da Justiça Federal. Segundo o anúncio do governo, será ampliado o debate para promoção do “desenvolvimento sustentável, com a garantia de preservação”.

Enfim, a busca de satisfação do interesse privado afasta cada vez mais o Brasil dos compromissos assumidos no Acordo de Paris, no qual se comprometeu a chegar ao desmatamento ilegal zero na Amazônia Legal até 2030. Parece longe, mas faltam apenas 13 anos para se alcançar esse prazo. Portanto, é preciso agir logo. Infelizmente, contudo, os detentores do poder político seguem tomando decisões que afetam as vidas e as estruturas naturais tão ricas da nossa floresta amazônica.

Fonte: Eduardo Coral Viegas

 Eduardo Coral Viegas é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.