As vítimas do rompimento da barragem de Fundão esperam há dois anos pela chance de retomar seus lares, seus trabalhos e suas histórias.
“É uma casa rosa”, diz Eliane Salgado, enquanto nos guia por onde um dia foi a Rua São Bento. O caminho é curto: uma pequena ladeira que ligava a Igreja São Bento à Igreja das Mercês. O chão está coberto por uma poeira fina, cor de argila. O tempo está seco. Ruínas vão surgindo conforme caminhamos. À esquerda, a antiga Escola Municipal Bento Rodrigues está tomada pelo mato. Do outro lado, uma mesa de pebolim atravessa a janela de outro escombro, encrostada de lama. As casas que se sucedem, também tomadas de lama e mato, não têm janelas, telhados ou portões – tudo foi saqueado. Pouco antes de chegarmos, Eliane suspira. “Não. Minha casa era rosa. Agora nem cor tem mais.”
Estamos em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, Minas Gerais. Outrora um vilarejo rural, é agora uma cidade fantasma, com acesso controlado pela Defesa Civil. Eliane é uma das cerca de 600 pessoas que moravam “no Bento”, como a comunidade costuma falar, até novembro de 2015. Foi quando a barragem de rejeito de minérios Fundão, da mineradora Samarco e de suas controladoras Vale e BHP, se rompeu. A arrebentação liberou uma enxurrada de lama podre que devastou três comunidades, contaminou e exterminou a vida no Rio Doce e percorreu 670 quilômetros até chegar ao mar. Destruição que configura o maior crime ambiental da história do Brasil. Eliane, então auxiliar na escola, hoje trabalha numa equipe que faz escavações na Igreja São Bento, em busca de imagens de santos e peças de valor soterradas. Sua casa, a poucos metros da igreja, manteve-se em pé para, dias depois, ser depenada por ladrões. A casa de sua mãe, não muito longe dali, foi inundada pelos rejeitos. Da igreja, restam apenas paredes que não chegam a meio metro de altura. “Eu sonho com isso. Nos meus sonhos, a lama afoga o meu filho.” Eliane não perdeu nenhum familiar, mas o rompimento matou 19 pessoas.
Eliane fala pouco, num tom apático. Foi deslocada para Mariana. A demora na reconstrução de um lar é sua segunda tragédia. “Só queria que construíssem o novo Bento logo. A vida em Mariana não está boa, não”, diz. ÉPOCA visitou Mariana e Barra Longa, os municípios atingidos pela destruição. Dois anos depois da tragédia, o reassentamento dos atingidos não começou. O valor das indenizações não foi definido. Os processos na Justiça se arrastam. O rejeito talvez nunca seja retirado do meio ambiente. “Algumas coisas avançaram”, diz o procurador da República em Minas Gerais José Adércio Sampaio, responsável pela força-tarefa que investiga a Samarco. “Mas a tragédia humana continua sendo tratada como emergência. Isso causa insegurança nas comunidades.” Os atingidos estão duplamente vulneráveis – pela tragédia do passado e pela angústia sobre o futuro.
Na tarde de 5 de novembro de 2015, um reservatório que continha mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos secos, em forma de areia, da barragem de Fundão se rompeu. Rejeito é o termo técnico para o lixo que sobra no processo de mineração – no caso, de ferro. Os rejeitos escoaram para a barragem de Santarém, também da Samarco, de armazenagem de água. A mistura criou uma lama, que transbordou e ganhou força e velocidade. Treze funcionários da Samarco morreram. Oito quilômetros adiante, essa enxurrada chegou a Bento Rodrigues. Pela lei, a Samarco devia ter uma sirene ou um equipamento para avisar a população. O equipamento existia, mas estava em manutenção. A comunidade foi avisada por pessoas descendo as ruas de moto, aos gritos. Quatro moradores e um turista morreram. A 19ª vítima nunca foi identificada. A onda de rejeitos devastou mais duas comunidades: Paracatu de Baixo, no município de Mariana, e Gesteira, no município de Barra Longa. Desaguou no Rio do Carmo e, enfim, no Rio Doce. A onda alaranjada seguiu dissolvendo margens e calhas dos rios. Dezessete dias depois do rompimento, a lama escorreu para o mar.
No centro de Barra Longa, o lodo contaminado já foi completamente retirado. Nos três outros distritos, não – o Ministério Público considera os escombros enlameados como prova do crime da Samarco. A região foi identificada como área de risco pela proximidade com a barragem rompida, o que impede o retorno das famílias. Há propostas para transformar as ruínas em um memorial. Os moradores estão desterrados. Esperam, impacientes, para ser reassentados em novas casas em um terreno vizinho. É custoso entender tamanha demora. “A vida da gente está assim: é como se estivéssemos assistindo a um filme e alguém pausou para pegar a pipoca. Parou”, diz Rosária Ferreira Duarte Frade, uma das integrantes da Comissão dos Atingidos, moradora de Paracatu de Baixo. Desalojados de suas vidas, de suas casas, longe da roça e de seus animais e sem emprego em Mariana, os atingidos estão num limbo. Não raro, o ócio e a discriminação que eles passaram a sofrer levam à depressão.
Em uma casa próxima às ladeiras de pedra que levam à parte histórica de Mariana fica um dos 13 escritórios que a Fundação Renova mantém em Minas Gerais e no Espírito Santo. Criada para gerir o dinheiro que as mineradoras são obrigadas a investir nas áreas devastadas por seus rejeitos, a Renova é a responsável pelo reassentamento das famílias atingidas, por toda a operação de limpeza, reconstrução e recuperação do estrago no meio ambiente. Tudo no escritório é muito novo. As salas são limpas, os banheiros adaptados e há seguranças na porta. A Renova surgiu como parte de um acordo assinado pela então presidente Dilma Rousseff e os presidentes da Samarco, da Vale e da BHP no ano passado. O acordo prevê que a Renova use ao menos R$ 11 bilhões dos recursos das mineradoras. Atualmente, ela executa 42 programas, em que aportou R$ 2,5 bilhões – gastos com auxílio financeiro e moradia às vítimas; antecipação de indenizações; atendimento à saúde, física e psicológica, das vítimas; reconstrução de duas escolas; obras nas calhas dos rios e em uma estação que filtra a presença de metais na água em Governador Valadares, entre outros investimentos.
Recriar as comunidades destruídas pelo lodo deve custar cerca de R$ 500 milhões. Nenhuma obra começou até o momento. A Renova diz que o processo é “complexo e participativo” e que todas as etapas do reassentamento são discutidas com os atingidos e avaliadas pelos órgãos governamentais. Para a escolha do terreno que abrigará a comunidade de Bento Rodrigues, por exemplo, foram levantadas 18 áreas. Três foram analisadas. No dia 17 de maio, os desterrados elegeram como novo lar um terreno conhecido como Fazenda da Lavoura, a 14 quilômetros de onde viviam. O desenho da nova comunidade deve ser exatamente igual ao do distrito devastado pela lama: as igrejas, os prédios públicos, as ruas… “O objetivo é restabelecer o modo de vida numa condição igual ou melhor do que a anterior”, diz Marco Vital, engenheiro da Renova. Também as casas devem ser idênticas às soterradas. Se o atingido tinha um canil ou uma garagem, a Renova é obrigada a replicar. A expectativa é que o desenho final do novo Bento seja aprovado pela comunidade neste ano, o projeto passe por um licenciamento-relâmpago e as obras comecem no ano que vem, para ser entregues em março de 2019. Quase cinco anos após o rompimento da barragem. No caso de Paracatu, ainda há uma parte do terreno em negociação. O terreno para assentar os moradores de Gesteira já foi escolhido, mas não foi comprado.
A vida provisória dos atingidos é levada em casas alugadas pela Renova em Mariana e Barra Longa. As famílias também recebem um auxílio emergencial, de um salário mínimo mais R$ 80 por dependente. E ainda devem ser indenizadas pelas perdas patrimoniais e por danos morais. Essa indenização está longe de ser acertada. Em uma audiência pública acompanhada pela reportagem no dia 16 de outubro, atingidos e uma equipe de assessoria técnica de um lado e advogados da Samarco do outro debatiam as regras para fazer um cadastro dos bens destruídos. Em dois anos, não há sequer um inventário coerente das perdas. O Ministério Público de Minas Gerais conseguiu que a mineradora antecipasse parte da indenização para quem perdeu veículos ou casas. Segundo o promotor de Mariana, Guilherme de Sá Meneghin, essa decisão judicial provocou um amargo efeito colateral: multiplicaram-se os episódios de discriminação contra as vítimas dos rejeitos. “Logo depois do desastre, a população da região abraçou os atingidos. A situação começou a mudar quando passamos a assegurar a eles alguns direitos. Eles passaram a ser vítimas de novo, agora de preconceito. São acusados de aproveitadores e de estarem impedindo a volta da operação da Samarco.”
As vítimas passaram a ser os “pé de lama” e o pequeno auxílio que elas recebem a “bolsa lama”. Há vendedores que se recusam a atender os atingidos ao vê-los usar o cartão emergencial. Em duas situações, o Ministério Público precisou intervir. Um jornal local foi condenado na Justiça após publicar um editorial com termos ofensivos aos atingidos. Filhos das vítimas tiveram de ser transferidos de uma escola onde sofriam bullying de colegas. Os alunos de Mariana acabam reproduzindo um discurso que escutam dos pais: de que os atingidos são culpados pelo rompimento, de que o pai só perdeu o emprego por causa da população de Bento Rodrigues e de que as vítimas não tinham nada e, agora, vão ganhar uma casa nova. “Chamam a gente de à toa, vagabundo. Os filhos da gente estudavam em Mariana. Fizeram um abaixo-assinado com 3 mil assinaturas para tirar as crianças de lá. Meu filho sofreu muito”, diz Eliane. A prefeitura de Mariana e a Renova construíram uma nova escola, temporária, exclusiva para cerca de 170 filhos de atingidos – e deram o nome da que hoje está destroçada, Escola Municipal Bento Rodrigues. Eles estão segregados.
“Muita gente diz que a Samarco vai nos dar uma casa. Não vai dar. Todo mundo já tinha. Ela só vai devolver.” Sandra Quintão, comerciante e moradora de Bento Rodrigues, está indignada. Ela era dona do Bar da Sandra, que também era seu lar. O imóvel tinha dois andares, com quartos para viajantes pernoitarem. O bar era um famoso ponto de encontro da comunidade, incluindo funcionários da Samarco, ao lado da igreja. Ponto de parada também da turística Estrada Real, não raro o bar recebia a visita de cavaleiros e andarilhos. Sandra mareja quando conta que chorou por uma semana após o rompimento da barragem. A lama destruiu seu sustento e seu lar. Depois do luto, Sandra decidiu se mexer. Voltou a cozinhar ainda hospedada em um hotel pago pela Samarco. Usava a cozinha do hotel para fazer coxinhas e pé de moleque. Quando saiu o adiantamento de sua indenização – que Sandra encara mais como um empréstimo, já que o valor vai ser descontado do total –, ela comprou uma barraca, freezer e equipamentos de cozinha. Hoje, ela vende seus produtos em duas feiras de Mariana, o que ajuda no sustento de sua família e de sua filha, a pequena Ana Amélia. A rotina é dura e Sandra não é de reclamar. Suas feições se abrem quando se lembra de Bento Rodrigues. “Já me disseram para abrir um bar em Mariana. Mas lá tinha um clima bom da roça, o pessoal gostava da tranquilidade. Aqui não tem lugar para o Bar da Sandra.” Ela fala nostálgica do piso de pedra que tinha em casa, dos três fogões a lenha que usava para cozinhar feijão-tropeiro, frango com quiabo, feijoada… Num susto, volta à realidade. “Ninguém está feliz aqui. A gente vê nos olhos das pessoas.”
Alguns atingidos tiveram condições de escolher reconstruir suas vidas na cena do crime da Samarco. Moradores das áreas rurais de Mariana e Barra Longa não viram suas casas devastadas. A destruição, no caso deles, foi de suas terras, de suas plantações, de sua subsistência. ÉPOCA visitou o sítio de Rafael e Adelina Arcanjo na tarde de uma terça-feira quente. O olhar atento de produtor rural de Rafael previa chuva, contrariando o céu limpo. A propriedade é uma das 280 que participam do projeto de recuperação rural da Renova. Adelina nos leva à cozinha. Enquanto prepara o café, adoçado com a cana colhida ali mesmo, e serve o leite, tirado naquela manhã, ela conta sobre um cachorro que apareceu no sítio poucas semanas depois do rompimento da barragem. Aos risos, diz que ele era marrom e chegou sem aviso – por isso, foi batizado de “Rejeito”. Ao sítio de Rafael e Adelina, a lama chegou pouco antes da meia-noite daquele 5 de novembro. Adelina ainda treme ao reviver o medo. Primeiro, a energia acabou. Depois, o telefone ficou mudo. O que mais assustou foi o barulho. “Era um som horroroso. Começou como algo parecido com vento, depois aumentou. As vacas começaram a urrar.” O casal correu para salvar suas 30 vacas leiteiras. Depois de 12 dias isolados pelo rejeito, depararam com o que seria sua nova realidade. Como produzir se o pasto e o rio estavam contaminados? Os animais ainda hoje não podem comer a grama. São alimentados por forragem, pasto feito de plantas secas, parte dele fornecido pela Renova. Também não podem beber a água do rio. O rejeito não é tóxico, como se suspeitou nas primeiras semanas após a tragédia. Mas contém uma quantidade enorme de metais, como ferro, alumínio e manganês. Na água, os metais ficam muito além do permitido por lei, seu consumo é arriscado. Rafael e Adelina passaram a dividir sua água, tirada de uma nascente acima da área atingida, com os animais. “A renda nossa acabou foi muito”, diz Rafael. “Perdemos tanto leite que no ano passado não consegui nada.”
A lama ainda está lá. Quando a barragem estourou, quase metade do volume de lodo ficou depositada nas margens dos primeiros 100 quilômetros de rios atingidos – como nos arredores das terras de Rafael e Adelina. As características desse rejeito variam. Quando seco, ele tem grãos mais finos do que a areia de praia. Basta molhar um pouco para que esse material se transforme numa espécie de areia movediça. Ao secar, o rejeito se deposita. Nas casas, está encrustado nas paredes, enrijecidas. Nas ruas de Bento, pequenos montes de rejeito e terra chegam a meio metro de altura. Não há precedentes de um desastre dessas proporções, não se sabe como lidar com essa lama. A Samarco argumenta que, mesmo que limpasse tudo, não teria onde armazenar os rejeitos extraídos e que, ao colocar máquinas para retirá-los, os danos ao meio ambiente poderiam ser ainda maiores.
A Renova aprovou em junho deste ano um plano que prevê uma remoção “cirúrgica” da lama apenas em poucas áreas identificadas como de grande importância ambiental ou econômica. No restante do curso dos rios, o rejeito fica onde está. A fundação diz que consegue incorporar essa lama ao meio ambiente, transformando-a em solo fértil. Essa operação já está em andamento, e deve ser concluída até o final do ano. O rejeito é estéril. Não é possível plantar nada onde ele predomina. A solução foi misturá-lo ao solo e cultivar leguminosas, para criar ali matéria orgânica. As águas dos rios estão mais claras, longe da turbidez vista há dois anos. “Hoje, o rio tem vida, há alguns tipos de peixes. Mas é preciso monitorar o período de chuvas”, diz Leonardo Silva, especialista de programas socioambientais da Renova.
ÉPOCA consultou pesquisadores independentes e eles são críticos à tese de não remover o rejeito, justamente pelo que aconteceu no período de chuvas do último ano. “Nós medimos os parâmetros de metais na água do Rio Doce antes e depois das chuvas. Depois das chuvas, eles voltaram à mesma ordem de grandeza de quando foi contaminado em 2015”, diz Alex Bastos, pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). As chuvas jogaram o rejeito depositado nas margens dos rios de volta para a água. “Se esse rejeito não for removido ou não estiver muito bem estabilizado, a contaminação vai ser constante”, diz Miguel Fernandes Felippe, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Esse cenário seria uma nova catástrofe para produtores da região.
A incerteza não tira o sono de Rafael. Aos 57 anos, ele fala pouco e guarda um olhar que acalma, como de quem já viu muita coisa. Questionado sobre se ele acha que as ações de recuperação estão surtindo efeito, tudo que ele faz é acenar, com a mão segurando o chapéu, para mostrar uma área perto do rio. A grama, plantada em cima do rejeito, está verdinha – mas ainda não recebe os animais. A propriedade de Rafael foi uma das primeiras a receber melhorias, como parte de um projeto que recebeu recursos da banda americana Pearl Jam. Foram feitos piquetes para melhorar a qualidade dos pastos e evitar a degradação de Áreas de Proteção Permanente, a perfuração de um poço, a reconstrução de cercamento dos animais e a instalação de fossas que evitam despejar esgoto no rio. “Agora que estamos recuperando. Não vou dizer que está 100%. Mas vai dar certo.” O otimismo de Rafael, que nunca ouviu uma música do Pearl Jam, não se replica na fala de outros atingidos. Mas todos esperam a mesma coisa: que o rio, as terras e as comunidades sejam logo recuperados e esse rompimento de dois anos seja, enfim, estancado.
Fonte ÉPOCA
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