Sentada no escritório de casa, uma senhora de 86 anos admira sua última conquista: ela observa a foto aérea do Museu da Natureza, uma estrutura grandiosa e que desde o final de 2018 funciona no interior do Piauí. A mulher é Niède Guidon, um nome que se confunde com outro, o de sua obra-prima – o Parque Nacional Serra da Capivara. Esse é o endereço da maior quantidade de sítios arqueológicos das Américas e um Patrimônio da Humanidade segundo a UNESCO.
Nem bem nos sentamos e a Dra. Niède começa a falar da luta de sua vida. Uma luta, ela se apressa em dizer, que nasceu perdida. Eu me apresso em contestá-la: as experiências que tivemos nos dias anteriores, perambulando por um parque nacional totalmente organizado e não com um, mas agora dois museus fantásticos no meio do sertão, mostram que ela vem vencendo o combate, mesmo que lentamente.
Os visitantes, é verdade, ainda são poucos: entre 20 e 25 mil por ano. Nos cinco dias em que ficamos na Serra da Capivara, cruzamos com turistas apenas duas vezes – um casal, no Boqueirão da Pedra Furada, o sítio mais famoso. E vários alunos de escolas da região que visitavam o Museu da Natureza, uma novidade e por isso mesmo chamariz.
No meio da caatinga tinha um museu (Foto: Fellipe Abreu)
Este texto faz parte do Origens BR, um projeto do 360meridianos que vai investigar a história – e a pré-história – do Brasil. Do período imediatamente anterior ao desembarque dos conquistadores até milhares de anos atrás. O Origens BR conta com o patrocínio da Seguros Promo e da Passagens Promo, empresas que tornaram essa investigação possível.
Parte da caatinga, bioma 100% brasileiro e que tem mais biodiversidade que a Europa inteira, a Serra da Capivara é mais que uma combinação de paisagens lindas e muita arte rupestre. Passa por ali uma das grandes disputas da arqueologia mundial: quando o ser humano chegou nas Américas?
Na época do desembarque de Niède no Piauí, nos anos 1970, a teoria mais comum era a da Cultura Clóvis, que tem esse nome por conta de uma cidade do Novo México, Estados Unidos. Ali, no final da década de 1920, foram encontrados restos humanos com pouco mais de 13 mil anos. Os ossos estavam ao lado de fósseis de mamutes, comprovando que já existiam humanos nas Américas durante a última glaciação – e que nossos ancestrais caçavam seres da era do gelo.
A partir dessa descoberta, pesquisadores formularam a hipótese de que o homem teria chegado ao continente americano há algo entre 13 e 17 mil anos, pelo Estreito de Bering, durante a última era glacial e quando uma passagem se formou entre a Ásia e o que hoje é o estado norte-americano do Alasca. As Américas teriam sido tomadas pelos humanos do norte para o sul e a partir dessa única migração.
Niède Guidon e a Serra da Capivara
“A primeira vez que eu vi as fotos das pinturas foi em 1963”, lembra Niède Guidon. Nascida em Jaú, cidade paulista, ela tinha se graduado em História Natural pela USP e trabalhava no Museu do Ipiranga. Ao organizar uma exposição sobre arte rupestre, recebeu a visita de um homem que carregava várias fotografias de pinturas. Ele disse: “Lá perto da minha cidade, no Piauí, a gente também tem esses desenhos de índios”, recorda a pesquisadora. E garante que de cara percebeu que se tratava de algo “completamente diferente”.
Pinturas no Boqueirão da Pedra Furada, Serra da Capivara (Foto: Fellipe Abreu)
Niède até tentou visitar o Piauí naquele mesmo ano, mas a oportunidade só veio na década seguinte, após um período dedicada à arqueologia pré-histórica na Université Paris-Sorbonne. Aproveitando uma viagem de trabalho ao Brasil, ela foi até o Piauí. E dois dias, cinco sítios e muitas fotografias depois, ela voltou para a França, onde conseguiu financiamento para a primeira missão arqueológica na Serra da Capivara. Quando as escavações começaram, a surpresa:
“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do ocre vermelho, pedaços de paredes com pinturas caídas. Chegamos em datações de 26 mil anos”. O estranhamento foi tanto que Niède achou que o laboratório tinha trocado as amostras. Como a teoria de Clóvis garantia, não existiam seres humanos nas Américas há tanto tempo.
Após a certeza de que a datação era mesmo de amostras do Piauí, Niède passou a formular a teoria que irritou clovistas e que foi publicada na revista Nature: a presença humana nas Américas seria muito anterior ao que se pensava. Mais tarde, ela sugeriu que os primeiros habitantes dessa terra teriam chegado a partir da África e desembarcado no atual Piauí, perto do Delta do Parnaíba. Eles teriam sido carregados pelas correntes marítimas, num momento em que os oceanos estavam mais baixos, revelando ilhas que não existem atualmente e que teriam tornado a viagem possível.
Foto: Fellipe Abreu
“Na Europa não houve nenhum problema, todos aceitaram. Somente alguns pesquisadores norte-americanos contestaram, falaram que era impossível, porque o homem teria entrado nas Américas por Bering, há cerca de 15 mil, 17 mil anos. Como a Europa sempre aceitou (a hipótese dela) e como os Estados Unidos nunca tiveram uma escola de arqueologia como a europeia, com a tecnologia europeia, nós nunca ligamos muito pra isso”.
Niède Guidon
A polêmica, no entanto, foi maior do que a Dra. Niède fez parecer em nossa conversa. Mereceu colunas em jornais, trocas de acusações e muito debate. Para os clovistas e mesmo para pesquisadores que nunca acreditaram totalmente na teoria norte-americana, como o brasileiro Walter Neves, as datações encontradas na Serra da Capivara estavam equivocadas.
O problema é que as datações mais antigas não eram de ossos ou restos humanos, que se desfazem com mais rapidez no solo ácido da Serra da Capivara. Eram de resquícios de cinzas, que a arqueóloga e sua equipe consideraram fogueiras, e de pedras que teriam sido transformadas em ferramentas pela mão do ser humano. Isso não é tão incomum assim, afinal ossos e esqueletos que passem da barreira dos 10 mil anos são raríssimos.
Só que os opositores alegavam que as cinzas analisadas por ela poderiam ser de um grande incêndio, portanto de causas naturais, e que as pedras não seriam ferramentas produzidas pelo homem, mas lascadas naturalmente, ao caírem do alto do paredão que cerca o sítio da Pedra Furada.
Vista aérea da Serra da Capivara
Escavações seguintes, de outros pesquisadores, aumentaram o debate. O italiano Fabio Parenti analisou milhares de seixos, que são fragmentos de rochas, e concluiu que existem sinais incontestáveis de que as pedras encontradas ali foram, sim, lascadas pela ação do homem. E nessas escavações foram encontrados objetos ainda mais antigos, de até 50 mil anos. Eric Boëda, professor da Universidade Paris X, foi outro que garantiu que os seixos só poderiam ser de ação humana.
Já a geógrafa Gisele Felice analisou as cinzas do Boqueirão da Pedra Furada, abrindo várias trincheiras para verificar se elas teriam sido causadas por um incêndio ou pelas fogueiras dos primeiros habitantes do Brasil – se fosse um incêndio, as cinzas deveriam estar em toda a área. A conclusão também foi que elas seriam ações do homem, além da descoberta de mais sítios arqueológicos. E até o estudo de coprólitos – fósseis de fezes – indicou uma ocupação humana pré-clóvis na Serra da Capivara. Adauto Araújo, da Fundação Oswaldo Cruz, achou parasitas que não teriam sobrevivido ao frio da Beringia, mas que ao mesmo tempo não são originários da América do Sul. Ou seja, esses parasitas chegaram ao Piauí por um caminho diferente do Alasca.
Quando o crânio de Zuzu, de 10 mil anos e encontrado na Serra da Capivara, foi estudado a fundo, selou-se a paz entre dois dos grandes nomes da arqueologia brasileira: Niède Guidon e Walter Neves, responsável pelas pesquisas envolvendo o crânio de Luzia, encontrada em Minas Gerais. Eles formularam a hipótese de que os dois povos, de Minas e do Piauí, carregavam características comuns e que destoam das de outros povos ancestrais das Américas. Enquanto esses primeiros habitantes do Brasil tinham traços africanos ou mesmo de nativos australianos, em outros sítios os restos são de humanos asiáticos – ou mongoloides.
Walter Neves declarou na ocasião que tinha saído do Piauí com “99,9% de certeza de que há sítios de ocupação humana com mais de 30 mil anos na Serra da Capivara”, quebrando de vez a teoria de Clóvis. Mas garantiu que aquele 0,01% seguia incomodando. E note que ele não deu o braço a torcer para as estimativas ainda mais, digamos, audaciosas de Niède, que hoje fala em seres humanos no Piauí há 100 mil anos. A migração a partir da África, e não por Bering, também segue um ponto polêmico. “Se ela estiver certa, teremos de jogar tudo que sabemos fora. Meu trabalho não terá servido para nada. Mas, graças a Deus, não só o meu, o de todo mundo”, disse.
Crânio de Zuzu, encontrado na Serra da Capivara (Foto: Fellipe Abreu)
“Com o avanço das pesquisas, nos Estados Unidos descobriram um sítio com 130 mil anos. No México já existem sítios muito antigos também, no Chile um com 125 mil anos, no Uruguai um com 70 mil. Não há o menor problema, o homem chegou à América há muito tempo. E chegou pelo norte, pelo Bering, que são os de origem asiática. E aqui vieram da África, que passou por um período de muita seca, que originou os desertos, e eles foram então ao mar para procurar comida. Inclusive, foi encontrado no México o esqueleto de uma jovem que foi datado em 17 mil anos. Fizeram a análise e ela tem DNA africano e asiático. Eles se encontraram no México e ali houve essa primeira mistura desses dois tipos humanos”.
Niède Guidon
A Serra da Capivara e as pinturas rupestres
Perguntei para a Dra. Niède se as novas descobertas, agora de pesquisadores norte-americanos, faziam com que ela se sentisse feliz por ver sua versão, tão contestada por anos, ganhando terreno frente aos clovistas. A resposta foi a mesma: a arqueóloga garante que nunca ligou para isso, que jamais quis alterar a teoria de povoamento das Américas. A verdadeira luta – aquela que ela acha que nasceu perdida – nunca foi essa.
(Foto: Fellipe Abreu)
Para Niède Guidon, a batalha sempre esteve na preservação do patrimônio da Serra da Capivara e na tentativa de mostrar para as pessoas a riqueza da área. Além da importância histórica, há a beleza da região. São milhares de pinturas rupestres, algo que não existe dessa maneira em outro ponto do globo.
O Boqueirão da Pedra Furada – o sítio da polêmica – é cercado por paredões enormes e ainda tem as marcas de duas cachoeiras em suas laterais. Em seus tempos de ouro, era procurado por nossos ancestrais pelo ambiente protegido. Aqueles povos deixaram as mais variadas pinturas em suas paredes: só ali são mais de mil, muito, muito acima do que é encontrado nos mais importantes sítios europeus.
De veados a tatus, de cenas de caça a cenas de sexo e rituais religiosos, os primeiros habitantes do Piauí registraram na pedra seu dia a dia. “Há 9 mil anos, o alto da chapada era Floresta Amazônica e aqui na planície era Mata Atlântica. Dois biomas muito ricos e diversificados. Tudo isso explica por que o homem que chegou aqui, há 110 mil anos, aqui permaneceu”, explica Niède.
Desenho dos dois veados, um símbolo do Parque Serra da Capivara (Foto: Fellipe Abreu)
E o Boqueirão da Pedra Furada é só um dos 204 locais abertos para visitação na Serra da Capivara, que tem mais de 1300 sítios arqueológicos já registrados. Embora existam locais que exijam um pouco mais de esforço para serem alcançados, muitos dos sítios mais importantes podem ser facilmente acessados em carros de passeio e envolvem caminhadas curtas – alguns são até acessíveis para cadeirantes e muitos têm passarelas para turistas, que podem ver as pinturas de pertinho. Um tesouro, mas que o turista brasileiro pouco conhece e ainda não dá o valor devido.
“O que acontece é que o brasileiro não respeita os povos indígenas. Muitas pessoas me disseram: por que a senhora fica estudando esses bichos que andavam pelados por aí? Bichos. Para essas pessoas, eles (os primeiros habitantes das Américas) não eram seres humanos, não são uma cultura. É isso que precisaríamos mudar, mas não sei como.”
Niède Guidon
Após o desabafo da pesquisadora, menciono que até hoje se fala em descobrimento, e não em conquista do atual território brasileiro. A Dra Niède completa: “é como se não tivesse ninguém aqui antes dos portugueses”.
Museu do Homem Americano, Serra da Capivara (Foto: Fellipe Abreu)
A criação do Parque Nacional Serra da Capivara
As pesquisas e a luta de Niède Guidon resultaram na criação do Parque Nacional Serra da Capivara, em 1979. Em 1991, o local foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Hoje, é gerenciado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pela Fundação do Homem Americano (Fumdham), entidade sem fins lucrativos criada por Niède e que cuida da preservação do parque.
Na década de 1990, após se aposentar na universidade francesa, Niède se mudou de vez para São Raimundo Nonato, cidade do Piauí que serve de porta de entrada para a Serra da Capivara. A luta de décadas envolveu também a criação de um aeroporto em São Raimundo, que foi inaugurado em 2015, mas que até hoje não recebe voos comerciais. “É um problema de mentalidade, não entender que o turismo traz recursos para um país”, diz a arqueóloga. E o interior do Piauí, segundo estado mais pobre do Brasil e onde 21,6% da população está abaixo da linha da pobreza, certamente se beneficiaria do dinheiro do turismo.
Foto: Fellipe Abreu
Estimular a criação de hotéis e envolver a comunidade local foram outros focos da Fumdham, que chegou a criar, com o financiamento do governo italiano, escolas na região. Quando a verba europeia terminou, o governo brasileiro não quis assumir as escolas, que acabaram fechadas.
Outros motivos de luta foram a criação do Museu do Homem Americano e, já em 2018, do Museu da Natureza, financiado pelo BNDS. Esse novo local guarda fósseis de bichos da megafauna, como preguiças e tatus gigantes, do tamanho de carros, e presas de tigres-dente-de-sabre. Assim, todas as descobertas ficam na região da Serra da Capivara.
(Foto: Fellipe Abreu)
“Desde que cheguei, comecei a trabalhar com as pessoas daqui, que foram meus guias (para achar os sítios). Depois que eu comecei a escavar, eu os ensinei, trabalhavam nas escavações. E sempre fizemos isso, procuramos formá-los, pensamos que o turismo ia se desenvolver, que íamos precisar de guias”.
Dentre as ações com as comunidades do entorno do parque, provavelmente nenhuma tem resultados mais visíveis que a cerâmica, que foi criada pela Fumdham nos anos 1990. A fundação trouxe um especialista do exterior, que ensinou técnicas de cerâmica para moradores da área. Hoje, 31 pessoas trabalham na oficina, que produz entre sete e oito mil peças por mês. Embora sejam muito procuradas por turistas, a maior parte vai diretamente paras as prateleiras de lojas e supermercados de várias regiões do Brasil. Todas levam desenhos e pinturas que lembram os tesouros da Serra da Capivara.
Se hoje muitos dos moradores ganham seu sustento em atividades ligadas ao parque, outros ainda se ressentem da criação da unidade de conservação. Como é comum em casos assim, muita gente teve que deixar suas casas – e vários não tinham a posse legal do terreno, embora morassem no local há anos. Atividades como a caça, praticada na região há gerações, foram impedidas e desestimuladas.
A comunidade de Zabelê foi uma das mais afetadas. Como ficava dentro da área que virou unidade de conservação, a vila teve que ser mudada de lugar. Os moradores só acharam um novo endereço após ocuparem o terreno de uma fazenda vizinha. Hoje, muitos moradores do Novo Zabelê tentam tirar sustento do turismo e trabalham para a criação de um pequeno museu que pretende lembrar a história da comunidade.
Seu Nôca e o Museu do Novo Zabelê (Foto: Fellipe Abreu)
Enquanto isso, o parque passa pela escassez constante de recursos e pela falta de funcionários, fundamentais para garantir a preservação dos sítios – hoje, muitas das guaritas estão fechadas por falta de verba. “Abelhas fazem colmeias acima das pinturas, às vezes cai um pedaço da rocha, começa a escorrer a água por cima, a gente faz todo um trabalho para evitar a destruição dessas pinturas”, explica Niède. E lembra que compete ao governo manter o local e que em outros países o acesso para patrimônios da humanidade é mais fácil. A falta de hotéis de qualidade e a dificuldade de locomoção até o interior do Piauí são outros desafios apontados pela pesquisadora – hoje, a rota mais curta é a partir de Petrolina, em Pernambuco, e envolve 300 km de estrada.
Serra da Capivara (Foto: Fellipe Abreu)
Aos 86 anos e tendo enfrentando recentemente doenças complicadas, como dengue, zika e chikungunya, que a deixou com dores constantes nas articulações, Niède Guidon não se cansa de dizer que está cansada. Mas sempre termina a frase já sabendo qual será a próxima batalha. Após inaugurar o moderníssimo Museu da Natureza, agora a arqueóloga quer levantar recursos para reformar o Museu do Homem Americano, que ficou pequeno para tantas descobertas. Não são poucos os resultados dessa luta que nasceu perdida.
Fonte: 360meridianos
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