SÃO JOÃO MARCOS ANTES DE 1940 – CIDADE QUE SUCUMBIU POR UM ERRO
17 de agosto de 2019

São João Marcos foi um antigo município do estado brasileiro do Rio de Janeiro
despovoado e demolido na década de 1940 para a formação de uma represa para
a produção de energia elétrica.

Criada em 1733, São João Marcos atingiu o auge da prosperidade no século seguinte, com a expansão da cultura cafeeira fluminense.

O padrão de vida elevado e os recursos investidos em educação, cultura e bem-estar justificavam a adoção do termo “barão” para designar os refinados latifundiários fluminenses, em oposição aos “coronéis”, como eram chamados os fazendeiros do resto do País (poderosos porém truculentos, sem polimento social).

Uma das maiores cidades fluminenses do século 19, com mais de 20.000 habitantes, terra natal do ministro e acadêmico da ABL Ataulfo de Paiva, a então riquíssima São João Marcos, anteriormente conhecida como Vila de São João Marcos do Príncipe, era um dos principais núcleos produtivos do país – 2 milhões de arrobas de café por ano – e estava numa posição geográfica privilegiada: no centro da área produtora, na confluência de grandes rios, próximo à capital (Corte) e com ligação direta com o mar via Mangaratiba – estas vantagens, paradoxalmente, colaboraram para a tragédia da cidade.

Artistas de óperas e músicos conhecidos eram trazidos do exterior para se apresentarem nos diversos teatros da sociedade local; as muitas famílias abastadas contratavam governantas estrangeiras e professores particulares (preceptores) para educação privada de suas crianças; bibliotecas inteiras e instrumentos musicais chegavam em carroças e lombo de mulas; arquitetos e mestres-de-obras famosos eram chamados para erguerem novas casas e prédios públicos.

Também foi em São João Marcos que construíram a primeira estrada de rodagem do Brasil, em 1856, com 40 km de extensão, para escoar o café das fazendas do Vale do Paraíba para o Porto de Mangaratiba. No sentido inverso, em tráfego intenso, subiam mercadorias e escravos, muitos escravos. Só o maior fazendeiro da região e homem mais rico do Brasil em todos os tempos, o Comendador Joaquim José Breves, considerado “o rei do café” no Brasil Imperial, tinha oficialmente 6 mil negros – na realidade, especula-se que tivesse o dobro disso, contando os não registrados.

Como berço da expansão cafeeira no Vale do Paraíba, São João Marcos abrigou em suas terras os mais poderosos e abastados fazendeiros do País e suas plantações abasteceram o mercado europeu do século 19. Mas seu fim estava próximo e seria marcado por uma longa e incrível sucessão de acontecimentos sombrios.

Em 1888, com a abolição da escravidão, a produção cafeeira fluminense sofreu um duro golpe. Os fazendeiros não conseguiram suprir a necessidade de grandes contingentes humanos para trabalhar nas plantações e a produção caiu a níveis desastrosos. Enquanto isso, os agricultores do Oeste Paulista, com lavouras mais recentes e contando com lavradores assalariados, meeiros e imigrantes, assumiram a liderança do mercado rapidamente.

A situação estava péssima para a cidade. Com a decadência da cultura cafeeira fluminense e o desenvolvimento dos novos meios de transporte, São João Marcos foi perdendo importância e sua população ficou reduzida a pouco mais de 7 mil pessoas no início do século 20.

Enquanto isso, a menos de 100 quilômetros dali, a cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, se desenvolvia aceleradamente. A população aumentava e a ordem era transformar a capital numa metrópole moderna, orgulho da república. A grande questão era onde conseguir as fontes dos recursos exigidos pelo progresso, como energia elétrica e água potável encanada, por exemplo.

A solução já estava em mãos dos engenheiros da Light (cia. de eletricidade do Rio de Janeiro), que havia dois anos estudavam as possibilidades para suprir a crescente demanda. E a melhor opção, segundo eles, era criar uma represa e uma hidrelétrica no Ribeirão das Lages, no alto da Serra das Araras. Só tinha um probleminha: 97 grandes fazendas iriam ficar debaixo d’água. Justamente as maiores propriedades da área rural de São João Marcos.

Combalidos economicamente e sem o poder político de outrora, os fazendeiros de São João Marcos pouco puderam fazer contra a inundação de suas terras, a não ser reclamar. Ofícios, atas, moções e comunicados da época retratam o sofrimento dos moradores e mostram com riqueza de detalhes o desespero das autoridades locais com o início da construção da Represa de Ribeirão das Lajes.

Uma parte da população foi deslocada para municípios vizinhos como Rio Claro (que era seu distrito), Três Rios, Mangaratiba, Itaguaí e Piraí. Outra parte, de famílias pobres que não tinham para onde ir e famílias que não acreditavam “nessa tal inundação”, ficaram.
A inundação teve início. A represa avançava rapidamente. Grandes morros transformavam-se em pequenas ilhas. Plantações e casas desapareciam sob as águas turvas do Ribeirão das Lages. Enormes áreas da zona rural do município submergiram.

Nesse processo, formaram-se áreas alagadiças às margens da represa, nas quais jazia grande quantidade de restos orgânicos. A falta de cuidados sanitários na retirada destes propiciou a proliferação da malária, tornando-se uma terrível epidemia. Milhares de pessoas sucumbiram em silêncio. A população pedia desesperadamente por auxílio, mas nada foi feito. Durante cerca de duas décadas, os poucos habitantes que resistiram na cidade viveram em o mais completo esquecimento.

São João Marcos foi reduzida a ponto de, em 1938, ser extinto como município, tornando-se um distrito de Rio Claro. No ano seguinte, o núcleo urbano foi tombado pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, classificado oficialmente como “raro exemplo intacto de conjunto de arquitetura colonial”, atendendo aos pedidos da população local.

Em 1940 o presidente Getúlio Vargas “destombou” o distrito a fim de ceder as terras para a ampliação da represa. Escandaloso, foi o primeiro caso de “destombamento” no Brasil. O decreto-lei nº 2.269 autorizou a desapropriação de terrenos, prédios e quaisquer benfeitorias que viessem a ser inundadas.

Pouco antes de ser posto abaixo, o centro de São João Marcos tinha, além da Igreja Matriz, uma antiga capela, pertencente à Irmandade Nossa Senhora do Rosário e dedicada a São Benedito; dois cemitérios, o da Irmandade e o da Caridade para os pobres; dois clubes, o “Marquense”, deelite, com futebol e danças; e o “Prazer das Morenas”, mais popular; um teatro, o “Tibiriçá”; um hospital e uma pensão, além da primeira estrada de rodagem do Brasil, aberta nos tempos áureos do café. Já não circulava mais o jornal local, “O Município”, fechado em 1932. Um pouco afastadas, uma jazida de manganês inexplorada e uma fonte de água mineral.

As demolições começaram numa Quinta-Feira Santa. Dezenas de trabalhadores munidos de marretas e explosivos expulsavam as últimas famílias e dinamitavam as casas. Os prédios próximos da represa foram demolidos por barcos rebocadores com cabos de aço.
O caso mais traumático foi o da Igreja Matriz. Sua construção datava de 1796, com arquitetura maneirista, típica dos jesuítas, e barroca; seu interior era todo decorado em ouro.

Os operários se recusaram a mexer com o prédio sagrado e a construção era tão sólida que os recursos “normais” de demolição não seriam suficientes. A Light, então, contratou um especialista, sr. Dudu, de Rio Claro, para dinamitá-la. Consta que, por coincidência ou maldição, o dinamitador logo depois do serviço ficou “corcunda” e perdeu tudo, terminando seus dias como jardineiro no colégio de freiras de Valença, RJ.

Apenas o cemitério foi respeitado e parcialmente transferido para o alto de um morro. São João Marcos finalmente estava extinta, em ruínas. Era hora de levá-la para o fundo das águas.

Apesar de ter sido destruída a fim de ser inundada, as águas do lago que se formou se nivelara bem abaixo do nível da cidade. Logo surgiu o rumor de que os técnicos da Light haviam errado os cálculos e que a demolição de São João Marcos tinha sido desnecessária, pois a água não cobriu a antiga cidade. A população começou a se revoltar e, segundo alguns operários da Light contaram depois, a ordem superior veio rápida: “era preciso inundar a cidade, a qualquer custo!” E quase custou a própria represa, pois foi preciso fechar as comportas e fazer o nível subir além dos limites máximos de segurança da barragem.

A água apenas molhou alguns centímetros das ruínas de SJM, o suficiente para “justificar” a expulsão dos mais de 4 mil moradores, a estúpida agressão ambiental e o desaparecimento de dois séculos de nossa história. Desde então, jamais a represa tornou a alcançar a cidade, nem nos períodos de chuva mais intensa. A brutal destruição de SJM foi mesmo uma burrada de engenharia. Tanto sofrimento por um erro na prancheta.

FOTOS DA VISITA DO SEROPÉDICA ONLINE AS RUINAS (FOTOS LUIZ CALDERINI)