Impeachment: pode o STF rever a decisão do Senado?
13 de maio de 2016

Tema da ordem do dia é a discussão que gravita em torno da possibilidade de controle da decisão final de mérito que é produzida pelo Senado Federal no processo de impeachment. Este tema se torna ainda mais proeminente, ao menos por três razões de fato: há, no momento, tramitação de um processo desta natureza contra a senhora presidente Dilma; o Advogado Geral da União, José Eduardo Martins Cardozo, sinaliza que poderá levar a questão à apreciação do Poder Judiciário; o Ministro Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, eventual foro competente para a apreciação da matéria, revelou e fez consignar em ata de recente julgamento de Mandado de Segurança, que poderia a corte se imiscuir na substância da sentença congressual.

Neste passo, surge a seguinte questão: há limites ao controle da decisão final proferida pelo Senado? Em outras palavras: pode o STF rever o mérito da decisão expedida pelo Senado? A resposta pode ser obtida a partir de inúmeras razões, de ordem sociológica, política, ideológica e mesmo por força de alguns precedentes colhidos no próprio STF. Contudo, a melhor resposta é aquela cristalizada pela norma fundamental de um estado democrático de direito, no caso do Brasil, a Constituição de 1988.

Com efeito, determina o art. 52 da Carta Magna que compete, privativamente, isto é, somente ao Senado Federal, processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Daí, de rigor concluir que impõe a nossa democracia, pela força normativa e legítima daConstituição, que o julgamento do impeachment seja proferido pelo Senado, em única e última instância, o que significa, sem recurso a qualquer outra instância. Assim, nesta questão o Senado exerce função atípica jurisdicional plena, como se Suprema Corte fosse, dando a última palavra na matéria, que, após os recursos internos cabíveis dentro e para o próprio Senado, faz coisa julgada.

É dizer: a Constituição não autoriza o STF, e nem qualquer outro órgão ou Poder, controlar o mérito da decisão do Senado sobre crime de responsabilidade de Presidente da República, pena de violação frontal aos preceitos fundamentais da democracia, da separação dos poderes e da República. Caberá, pois, ao STF, se provocado, apreciar a regularidade do procedimento adotado pelos Senadores, o que, diga-se, não é controle de mérito da jurisdição atípica exercida privativamente pelo Senado.

E não se diga que há qualquer violação à soberania popular ou ilegitimidade jurídica do Congresso. A questão da legitimidade, do ponto de vista intrassistemático, não pode desconsiderar o que restou positivado na Constituição de 88. Por isso, sendo legítima a Constituição, porque democrática, não se pode dizer que a atribuição de competência judicial ao Senado seja ilegítima. Foi isso que estabeleceram os constituintes. É isso que deve ser aplicado e preservado. Reforça esta tese o fato de que até mesmo os senhores Ministros do STF, nos crimes de responsabilidade, são julgados pelo mesmo Senado que julga o presidente da República, que funciona, repita-se, com competência privativa, só dele, Senado, e de mais ninguém. Se o STF pudesse desconstituir a decisão do Senado, não seria deste a competência privativa para o julgamento. Ademais, normas como essas vigoram em outros países, integrando o denominado sistema de pesos e contrapesos.

Nem se alegue que haveria violação ao devido processo legal, substantivo e formal, notadamente ao duplo grau. É que no processo de impeachment não há duplo grau de jurisdição, assim como não há duplo grau quanto a matérias a serem decididas em jurisdição apenas do STF, como foi na hipótese da notória Ação Penal 470, mais conhecida como mensalão. Todo sistema jurídico contempla hipótese de foros especiais, impropriamente rotulado de foro privilegiado.

De outro lado, também não cabe controle judicial das razões pelas quais um parlamentar vota sim ou não, pela mesma lógica jurídica e sistemática do que ocorre com a votação das leis. As razões do voto constituem interna corporais, como também o são – e é bom que sejam – as razões ideológicas que embasam a votação nas casas políticas. Não se pode confundir o regime jurídico dos julgamentos do Judiciário com o regime jurídico do julgamento pelos órgãos legislativos, ainda quando estes estejam no exercício de competência jurisdicional atípica, uma vez que poder legislativo continuam sendo, com todas as suas características, atributos e prerrogativas constitucionais e legais.

E é por isso mesmo que se anota que o processo constitucional de um impeachment é considerado jurídico, pois relevante juridicamente, revestido da forma do direito posto, porém simultaneamente político, já que quem produz os atos, incluindo a decisão final, são agentes políticos, representantes diretos do povo, no legitimo exercício de mandato parlamentar. Portanto, de rigor frisar que os aspectos jurídicos sindicáveis pelo Poder Judiciário são apenas os de natureza processual. Pode-se até não concordar com a opção do constituinte brasileiro – e não só do brasileiro -, mas é esta a ordem constitucional vigente. Para além disso, estaremos diante de gravíssima violação à Constituição.

Pelo exposto, o impeachment não se confunde com qualquer outra ação penal, tendo regime constitucional próprio. Da leitura do art. 52, §§ 1º a 3º e 37 da Constituição, infere-se, sem maiores dúvidas, que o Senado é o juiz natural nos processos de impeachment, dotado de legitimidade democrática e atribuição política e jurídica, competência privativa mesmo, para dizer, a final, se os fatos imputados à presidente configuram ou não crime, a partir da tipificação que consta da parte da denúncia admitida e das provas de sua autoria. E em se tratando de crime de responsabilidade, e não de crime comum, cujo juiz natural é o Senado, órgão político por excelência, não há que se cogitar de excessivo rigor quanto à adequação típica, de resto aberta, diferentemente do que se passa ao ensejo de julgamento pelo Poder Judiciário.

Se a palavra final, quanto ao mérito de uma decisão que decreta ou não o impeachment, fosse de competência do Judiciário, não seria de competência, repita-se, privativa do Senado, cuja legitimidade democrática é até mais densa do que a do Presidente da República. Este é eleito pela maioria dos eleitores. Mas no Senado estão reunidos representantes majoritários de todos os Estados Membros da Federação, que compõem órgão colegiado representativo de vários partidos e, portanto, das mais variadas correntes de opinião.

Autores:

Márcio Cammarosano, advogado, doutor e mestre em direito administrativo pela PUC-SP e professor da faculdade de direito da PUC-SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Estado e da Comissão de Combate a Corrupção da OAB-SP.

Georges Humbert, advogado, pós-doutorando em Direito e Democracia pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em direito do estado pela PUC-SP, professor da faculdade de direito da Universidade Federal da Bahia Ufba

Impeachment e STF

 

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