É interessante observar que no Direito Penal, não só a mutação dos bens físicos criados pelos homens e colocados no mercado se transforma em objetos de desejos e interesses desmedidos como, por exemplo, um aparelho celular, mas também um fato da natureza vem despertar a mesma intenção de satisfação de necessidade, como é o caso da carência de água em função da estiagem e do baixo volume nos reservatórios. Em ambas as hipóteses as pretensões podem ser obtidas por meios lícitos, de acordo com as normas estabelecidas nas regras dos homens. Ou contrariando-as, de forma ilícita, com o cometimento de delitos contra a propriedade ao se assenhorear de determinado bem e ter sobre ele poder de disposição.
O furto de água há algum tempo ocorre de forma eventual ocupando pouco espaço nas persecuções penais e até mesmo na efetiva participação dos tribunais. Isto porque a abundância de água, seu custo reduzido, a facilidade de sua captação num país de farto período chuvoso, não animavam consumidores a se aventurarem pela senda do furto. É muito mais comum e constante o furto de energia elétrica, em razão justamente de seu elevado custo.
Mas, agora, por força da escassez alardeada em todo país, exibindo reiteradamente a aridez dos reservatórios, com os incessantes apelos para economizar água, sob o risco de racionar o uso com a introdução do rodízio em sua distribuição, o precioso e indispensável líquido passa a ser cobiçado e perseguido pela população. Recentemente, técnicos da Sabesp encarregados das operações nas ruas, receberam inúmeras ameaças da população revoltada que vislumbra um racionamento clandestino de água por parte da empresa, prejudicando, em consequência, a população reclamante. [1]
Neste clima de total insegurança por parte dos governantes e dependência da própria natureza, não será difícil antever a ocorrência de furto simples e até mesmo qualificado de água durante o período de escassez. Parece até ficção científica, como no filme Rango, história vivida em uma cidade onde a água foi desviada por um vilão e todos os cidadãos se mostram enfurecidos e desesperados até que Rango, um camaleão, consegue desvendar o segredo da falta de água e a faz jorrar em abundância.
Na modalidade do caput do artigo 155 do Código Penal, o agente irá praticar a subtração em residências, empresas e órgãos públicos e, de posse do líquido, irá armazená-lo em local adequado para seu uso, preferencialmente em sua moradia. Já na modalidade qualificada descrita como furto mediante fraude, o agente irá providenciar a ligação clandestina para que a água possa fluir livremente sem passar pelo hidrômetro. Tal situação, como enfatizada por decisões jurisprudenciais, lesa não só a empresa distribuidora, como também toda a sociedade. Mas, pode ser que o agente assim agiu não em razão de sua situação financeira, mas para atender as necessidades de sua família.
Assim, diante das circunstâncias, o agente pode alegar estado de necessidade e sua versão exculpatória torna-se verossímil, fazendo cofigurar a excludente de ilicitude. E, ao analisar sua conduta pelas lentes do Código Penal, chega-se a concluir que era a única exigível diante da situação concreta, para afastar perigo atual e inevitável, na defesa de seu direito próprio ou de familiares.
O Direito é uma ciência dinâmica e que tem como função dirimir os conflitos de interesses para se atingir com a maior perfeição e precisão a solução dos problemas cotidianos. É certo também que a vivência em sociedade traz restrições na satisfação dos interesses individuais, pois o que deve prevalecer são os interesses comuns e coletivos. Daí que há necessidade premente de analisar a conduta do agente relacionada com o furto de água com muita cautela para perquirir a real intenção que motivou seu ato.
A falta de água é preocupante e nem mesmo adianta clamar por Poseidon, que com seu tridente fazia brotá-la do solo. A natureza tem suas regras claras, mas o homem, na ganância de conquistar cada vez mais benefícios, jamais abriu os olhos, os ouvidos e a mente para entendê-la. Resta cantar a música de Guilherme Arantes que lastima “a água que o sol evapora/ pro céu vai embora/virar nuvens de algodão.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp.
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