I – Introdução
A proximidade de um novo pleito eleitoral é momento oportuno para revisitar as regras relativas aos crimes eleitorais. Nesta coluna e nas das próximas semanas, pretendo discutir diversos aspectos daquilo que se pode denominar de direito penal eleitoral. Na coluna de hoje inicio essa tarefa com a análise do procedimento especial para o processo e julgamento dos crimes eleitorais (arts. 355 a 364, do Código Eleitoral).
Como se sabe, o procedimento processual penal pode ser dividido em comum (ordinário, sumário e sumaríssimo) e especial, nos termos do art. 394, do CPP. Há diversos procedimentos especiais em nosso ordenamento processual penal, dentre os quais é exemplo o procedimento relativo aos crimes eleitorais.
Obviamente, afirmar que o procedimento é especial não significa dizer, necessariamente, que absolutamente todas as regras procedimentais serão distintas de um procedimento dito “comum”. Muitas das vezes, o procedimento é especial em face de uma (ou poucas) regra (s) que o diferenciam do procedimento comum ordinário. Assim, por exemplo, o procedimento relativo aos crimes contra a honra é especial em decorrência da audiência de conciliação prévia ao juízo de admissibilidade da acusação (arts. 520 a 522, do CPP) e em face do cabimento da exceção da verdade (art. 523). Todas as demais regras procedimentais dos crimes contra a honra são aquelas do procedimento comum ordinário.
Não é esse, porém, o caso do procedimento especial dos crimes eleitorais, que possui diversas especificidades previstas no Código Eleitoral. Ademais, deve-se lembrar que a Código Eleitoral é anterior ao texto constitucional, e muito embora tenha sido considerado recepcionado pela CR/88, deve ser objeto de filtragem e interpretação em conformidade com os postulados de um processo penal compatível com a instrumentalidade constitucional.
Assentadas as premissas, passa-se à análise das regras do procedimento especial.
II – Competência
Como os leitores desse prestigioso canal são os mais variados possíveis, peço licença para utilizar o princípio “in dubio pro aluno de primeiro semestre” para iniciar com um tema singelo, qual seja, a definição do juiz natural dos crimes eleitorais.
Nesse aspecto, o texto constitucional de 1988 delegou as regras de fixação de competência para processo e julgamento dos crimes eleitorais para Lei Complementar, consoante previsão do art. 121, caput, da CR/88: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”.
Enquanto o legislador ordinário não cria essa Lei Complementar, segue-se aplicando o art. 35, II, do Código Eleitoral, segundo o qual os juízes eleitorais possuem competência para “processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais”.
Deste modo, os juízes eleitorais julgam os crimes eleitorais (tipificados nos arts. 289 a 354, do Código Eleitoral) e também os crimes de competência da justiça comum federal (art. 109, IV, V, V-A, VI, IX e X, da CR/88) e estadual (competência residual) que forem conexos aos crimes eleitorais (as regras de conexão estão previstas no art. 76 e ss, do CPP).
Uma primeira conclusão que se pode extrair a partir de uma exegese dos dispositivos referidos é que crimes militares não são processados e julgados na Justiça Eleitoral, nem mesmo em hipótese de conexão com crime eleitoral. Essa mesma conclusão também poderia derivar de uma análise das regras que definem a competência da Justiça Militar (arts. 124, caput e 125, §§ 4º e 5º, da CR/88), as quais evidenciam que a Justiça Militar possui competência penal apenas para julgar crimes militares e que nas hipóteses de conexão entre crime militar e eleitoral haverá separação obrigatória de processos, de modo que o delito eleitoral será julgado na justiça eleitoral e o delito militar na justiça castrense.
Questão um pouco mais complexa diz com a conexão entre crime eleitoral e crime de competência do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, d, da CR/88). Sobre essa questão, a doutrina se divide em três posições: (a) unidade de processo e julgamento na justiça eleitoral; (b) unidade de processo e julgamento no Tribunal do Júri e; (c) separação de processos, com o julgamento do crime eleitoral na justiça eleitoral e do crime doloso contra a vida no júri.
Sem pretender aprofundar o debate – o que renderia ao menos duas colunas – vamos nos limitar a expor as justificativas de cada uma das correntes.
Quem defende a primeira posição, entende que se aplica à hipótese literalidade do art. 35, II, do Código Eleitoral, bem como a regra do art. 78, IV, do CPP, segundo o qual nas hipóteses de conexão “no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta”.
A segunda posição é defendida com o argumento de que a competência do júri para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida é expressa na Constituição, enquanto a competência da Justiça Eleitoral decorre de regra infraconstitucional, motivo pelo qual a antinomia normativa aparente (Júri X Justiça Eleitoral) se resolveria pelo critério hierárquico, prevalecendo, portanto, a competência constitucional expressa do Tribunal do Júri para julgar ambos os delitos (eleitoral e doloso contra a vida).
A terceira posição entende que ambas as competências (Júri e Justiça Eleitoral) são constitucionais e que inexiste relação de exclusão ou antinomia entre elas, motivo porque deve ocorrer a separação de processos.
III – Ação Penal
Como se sabe, a maioria dos delitos em nosso ordenamento está submetida a processo mediante o exercício de ação penal de iniciativa pública incondicionada. Nos casos de ação penal privada ou de ação pública condicionada, há previsão expressa em lei nesse sentido. No silêncio da lei, o crime será processado e julgado através de ação penal pública incondicionada.
Os crimes eleitorais são processados mediante o exercício de ação penal pública incondicionada (art. 355, do Código Eleitoral), a ser promovida pelo órgão do Ministério Público (art. 129, I, da CR/88) através de denúncia.
Como regra geral, o prazo para o oferecimento da denúncia é de 5 (cinco) ou 15 (quinze) dias, conforme esteja o acusado preso ou solto, respectivamente (art. 46, do CPP). No procedimento especial dos crimes eleitorais, o prazo é de 10 (dez) dias, não havendo distinções em hipóteses de acusado preso ou solto (art. 357, do Código Eleitoral).
Não sendo a denúncia exercida no prazo legal, admite-se, por força de previsão expressa no art. 5º, LIX, da CR/88, o exercício de queixa crime subsidiária, sem prejuízo da representação prevista no art. 357, § 3º, do Código Eleitoral.
Os requisitos formais da inicial acusatória são, em essência, os mesmos previstos no art. 41, do CPP, como se pode concluir pela simples comparação com a regra do art. 357, § 2º, do Código Eleitoral. Não havendo previsão expressa no que se refere ao número de testemunhas, aplicam-se as regras do procedimento comum ordinário (arts. 394, § 5º, c. C. Art. 401, caput, do CPP), podendo-se arrolar o máximo de 8 (oito) testemunhas por acusação e defesa.
Nas hipóteses em que o órgão do Ministério Público entender pelo arquivamento das investigações e o juiz discordar das razões invocadas, o art. 357, § 1º, do Código Eleitoral, prevê solução análoga àquela disciplinada no art. 28, do CPP, vale dizer, remessa dos autos ao Procurador Regional da República, que “oferecerá a denúncia, designará outro Promotor para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”
IV – Juízo de Admissibilidade da Acusação
No que tange ao juízo de admissibilidade da acusação, o art. 358, do Código Eleitoral contém previsão idêntica ao art. 43, do CPP (que foi revogado pela Lei 11.719/08):
Art. 358 – A denúncia, será rejeitada quando:
I – o fato narrado evidentemente não constituir crime;
II – já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa;
III – fôr manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.
Essa seria a regra aplicável na fase de admissibilidade da acusação por crimes eleitorais, não fossem as modificações ocorridas no CPP por força da Lei 11.719/08. Esta prevê hipóteses de rejeição liminar da denúncia ou queixa, independente de qualquer manifestação do acusado (art. 395, do CPP), admitindo-se ainda a absolvição sumária após a apresentação da resposta à acusação (art. 397, do CPP). E sabendo-se que essas regras gerais sobre a admissibilidade da acusação são aplicáveis a todos os procedimentos, mesmo que não previstos no Código de Processo Penal (art. 394, § 5º, do CPP), pode-se concluir que a regra do art. 358, do Código Eleitoral foi revogada pelas regras novas instituídas pela Lei 11.719/08.
V – Resposta à Acusação
Seguindo-se previsão análoga a do art. 396, caput, do CPP, o prazo para o oferecimento das alegações escritas nos casos de crimes eleitorais é de 10 (dez) dias, segundo dispõe o art. 359, parágrafo único, do Código Eleitoral.
VI – Interrogatório do Acusado
A regra do art. 359, caput, do Código Eleitoral, prevê que após o recebimento da denúncia, o primeiro ato de instrução processual será o interrogatório do acusado. Previsão semelhante aparece no rito especial dos crimes de drogas (art. 57, da Lei 11.343/06).
A previsão de que o interrogatório do acusado será o primeiro ato da instrução minimiza sobremaneira a garantia constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV, da CR/88), notadamente sob o prisma da autodefesa. Isso porque ao ser ouvido primeiramente durante a instrução processual, o acusado não tem conhecimento de todas as demais provas que serão produzidas contra si e ao seu favor, o que reduzirá as oportunidades de explicitar com maior profundidade a sua versão dos fatos.
É por essa razão que a reforma do procedimento comum modificou o art. 400, caput, do CPP e maximizou a garantia da ampla defesa, ao prever expressamente que o interrogatório do acusado será o último ato da instrução processual. Resta então saber se prevalece, neste aspecto, a previsão geral do CPP ou a previsão especial do Código Eleitoral. A posição prevalecente tem sido no sentido da aplicação dos critérios legais mais benéficos ao acusado:
CRIME ELEITORAL. PROCEDIMENTO PENAL DEFINIDO PELO PRÓPRIO CÓDIGO ELEITORAL (“LEX SPECIALIS”). PRETENDIDA OBSERVÂNCIA DO NOVO “ITER” PROCEDIMENTAL ESTABELECIDO PELA REFORMA PROCESSUAL PENAL DE 2008, QUE INTRODUZIU ALTERAÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (“LEX GENERALIS”). ANTINOMIA MERAMENTE APARENTE, PORQUE SUPERÁVEL MEDIANTE APLICAÇÃO DO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE (“LEX SPECIALIS DEROGAT LEGI GENERALI”). CONCEPÇÃO ORTODOXA QUE PREVALECE, ORDINARIAMENTE, NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS ANTINÔMICOS QUE OPÕEM LEIS DE CARÁTER GERAL ÀQUELAS DE CONTEÚDO ESPECIAL. PRETENDIDA UTILIZAÇÃO DE FATOR DIVERSO DE SUPERAÇÃO DESSA ESPECÍFICA ANTINOMIA DE PRIMEIRO GRAU, MEDIANTE OPÇÃO HERMENÊUTICA QUE SE MOSTRA MAIS COMPATÍVEL COM OS POSTULADOS QUE INFORMAM O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA. VALIOSO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (AP 528-AgR/DF, REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI). NOVA ORDEM RITUAL QUE, POR REVELAR-SE MAIS FAVORÁVEL AO ACUSADO (CPP, ARTS. 396 E 396-A, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.719/2008), DEVERIA REGER O PROCEDIMENTO PENAL, NÃO OBSTANTE DISCIPLINADO EM LEGISLAÇÃO ESPECIAL, NOS CASOS DE CRIME ELEITORAL. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DESSA POSTULAÇÃO. OCORRÊNCIA DE “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. (STF – HC 107.795-MC, Rel. Min. Celso de Mello, data 28. Out.2011)
Na coluna da próxima semana, seguiremos tratando das regras a respeito do procedimento especial dos crimes eleitorais, abordando questões sobre prerrogativa de função, alegações finais, recursos e execução das sentenças condenatórias!
Fonte: Canal Ciências Criminais
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