Quando o português Feliciano Mendes adoeceu, talvez por conta dos anos de trabalho nas minas da região de Ouro Preto, nasceu um ermitão. Querendo evitar a morte, Feliciano abraçou a fé e ergueu um oratório no alto do Morro Maranhão, em Congonhas do Campo, onde ele mesmo foi viver. Ele doou sua fortuna para a construção de uma igreja, que foi autorizada pelo bispo e pelo Rei de Portugal.
Enquanto o templo era erguido – com a ajuda e, garantem alguns, projetos do próprio ermitão -, ele morreu, deixando o alvo para outros fiéis. Feliciano Mendes nunca soube disso, mas aquele santuário não só ficou pronto, como também se tornou um marco no barroco brasileiro.
Séculos depois, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (MG), foi declarado Patrimônio Mundial pela Unesco.
O responsável por tanta fama é outro mineiro: Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho, que projetou os 12 profetas em pedra-sabão que fizeram a fama mundial do Santuário.
Além disso, a oficina de Aleijadinho também recebeu a encomenda de 66 estátuas de madeira que foram colocadas em seis capelas anexas ao templo central. Elas contam a história dos passos da paixão de Cristo.
Jubileu do Bom Senhor Jesus de Matosinhos
Há 240 anos, em todo mês de setembro Congonhas recebe uma das maiores peregrinações religiosas do Brasil. É o Jubileu do Bom Senhor Jesus de Matosinhos, que atrai cerca de 150 mil participantes por ano.
A festa, que ocorre entre 7 e 14 de setembro, começou em 1760. E já teve 239 edições: em duas ocasiões a festividade foi cancelada, a última em 2020, por conta da pandemia do coronavírus. Neste ano, tudo ocorre somente online. Em outros anos, muitos fiéis vêm de longe, inclusive de outros estados.
O Jubileu foi tema de uma série de crônicas do João do Rio, escritor e jornalista do começo do século 20, e publicadas em 1907 na Gazeta de Notícias. Para quem quiser conhecer mais sobre a celebração – com direito a viagem no tempo -, uma dica é o livro Dias de Milagre, enviado aos leitores do Grandes Viajantes, o Clube que Assinaturas do 360meridianos, focado em literatura de viagem.
Que impressão senti eu? Fosse do meu estado de nervos, aguçados por aquelas horas de travessia pelo fervor religioso, chicoteados pelos desencontrados sentimentos da multidão que cada vez mais me empolga, fosse pelo súbito deparar de uma sala escura com todos aqueles bonecos cheios de histórias, o efeito foi violento, foi extra real.
João do Rio, em Dias de Milagre
Os ex-votos e a Sala dos Milagres
A Sala dos Milagres fica do lado esquerdo da Igreja. Construída no século 19, essa área é um testemunho da fé dos incontáveis fiéis que já passaram por Congonhas. São os ex-votos, expressão que vem do latim e significa algo como “por uma promessa realizada”. O costume de dar graças existiu em diversas culturas, antes mesmo do cristianismo – há registros de ex-votos até em Roma, no Egito e na Grécia.
Trazido para a América Latina pelos conquistadores, os ex-votos são uma tradição católica. Geralmente são quadros, pintados de forma amadora, que contam a história de algum milagre realizado: uma operação bem sucedida, a bala de um revólver que não atingiu o alvo, a superação de uma doença… são quase histórias em quadrinhos nas paredes da igreja.
A cena sempre retrata a situação enfrentada pelo fiel e que exigiu a intermediação divina. Uma legenda, abaixo da pintura, costuma explicá-la e conter os nomes dos fiéis que tiveram o pedido atendido e que mandaram fazer a oferenda em forma de arte. E em geral os quadros são pequenos, de material barato e pintados na horizontal.
Em 1907, João do Rio também escreveu sobre a Sala dos Milagres. E ficou impressionado com os ex-votos.
A sala não devia ser chamada ‘dos milagres’, mas dos ‘recibos ilustrados’. Sim! Dos recibos ilustrados. Longe de mim, diante da pletora secular daquela fé, o mau gosto de uma ironia. Mas é que, desde o começo da igreja, há mais de um século, todo homem que viu realizado o seu pedido ao Senhor Bom Jesus de Congonhas, julgou-se na obrigação de mandar um quadro reproduzindo a cena da promessa, e a própria fotografia.
João do Rio, em Dias de Milagre
Nas paredes do templo também estão pernas, braços e outras partes de corpos, feitos de cera, que lembram milagres realizados. São outras promessas pagas pelos fiéis.
Como João do Rio nota, muitos dos milagres não são extraordinários, mas coisas banais. “É ter a doce sensação da sua (de Deus) proteção constante, é tornar o milagre, não um fato anormal, mas a própria essência da vida”, conclui o escritor.
Os profetas do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos
A Igreja em si não é muito diferente de tantas outras que existem nas cidades mineiras. O grande destaque do Santuário está no adro, a área ao redor do templo.
São 12 estátuas feitas em pedra-sabão e que têm as marcas da genialidade de Aleijadinho. Elas representam 12 profetas. E não confunda com os apóstolos de Cristo – os profetas retratados por Aleijadinho são os do Antigo Testamento e viveram séculos antes de Jesus.
A entrada do adro é vigiada por dois dos mais importantes: Jeremias e Isaías, que, entre outras coisas, profetizaram a queda de Jerusalém e o exílio dos judeus em Babilônia, segundo a doutrina judaico-cristã. Em seguida você vai se deparar com Baruque, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Habacuque, Jonas e Naum.
A obra-prima do conjunto é o profeta Daniel, retratado perto de um leão. Todos os profetas têm marcas que os identificam com suas histórias. Jonas e a baleia, por exemplo.
Por conta da poluição e de vândalos, os profetas sofreram com o passar dos séculos. O conjunto passa por obras de revitalização constantes e já até houve quem defendesse que os originais fossem enviados para um museu, com a substituição das obras do adro por réplicas – tipo o que foi feito em Florença, com suas estátuas ao ar livre. A medida, no entanto, não agradou a população local e os profetas continuam em seus lugares.
Construídas depois da Igreja, as seis capelas que formam os Passos da Paixão de Cristo também tiveram a contribuição de Aleijadinho, que trabalhou durante três anos na elaboração das 66 peças distribuídas pelas capelas. Mestre Ataíde, outro nome supremo da arte barroca brasileira, pintou as obras, assim como Francisco Xavier Carneiro.
“Vá para a lá de baixo e suba o morro em zigue-zague”, disse o taxista que me levou ao Santuário. A dica dele é a mesma de qualquer guia turístico. As capelas têm uma sequência correta e recontam os últimos passos de Jesus Cristo. Para isso, é preciso subir o morro, num modelo de peregrinação que guarda semelhanças com várias igrejas europeias, como as de Matosinhos e de Braga, em Portugal.
Por falar nisso, uma explicação rápida: a devoção ao Bom Jesus de Matosinhos começou em Portugal, na região do Porto, quando uma imagem de Jesus crucificado foi achada na praia. Os fiéis acreditavam que aquela escultura tinha sido feita por Nicodemos, judeu que viu a crucificação de Jesus e que teria atirado a imagem no mar para evitar a perseguição religiosa.
Vamos subir o monte? A Primeira Capela dos Passos, no pé do morro, mostra A Última Ceia. Preste atenção em Judas, com uma bolsa na mão, e nos outros apóstolos, surpresos com o momento em que Jesus revela que será traído.
A segunda capela (lembre-se: suba em zigue-zaque) é a Agonia no Horto das Oliveiras. Jesus, angustiado e suando sangue, conversa com um anjo (“afasta de mim este cálice”) enquanto dois apóstolos, João e Tiago, dormem.
Já a terceira capela mostra a prisão de Jesus. Repare em Pedro, à direita de Cristo, com a espada na mão, pouco depois de arrancar a orelha do soldado que tentava prender Jesus. Orelha que é mostrada na mão de Cristo – segundo a Bíblia, Jesus recolocou milagrosamente a orelha em seu lugar.
Chegou na quarta capela? Então você vai reparar que essa tem duas cenas. A primeira mostra Jesus sendo zombado e açoitado pelos soldados; na segunda ele está sentado e é tratado ironicamente como o Rei dos Judeus, usando uma coroa de espinhos, um manto vermelho e uma vara, que simulava um cetro.
Mais uma subida e você estará na quinta capela, que mostra Jesus Carregando a Cruz. Ele é seguido por duas mulheres chorando. Além deles, a cena tem soldados com pedras nas mãos, prontas para serem arremessadas, e até uma criança, que carrega um prego que será usado na crucificação. Que ocorre na última capela, onde Jesus está no chão, e também aparecem os dois ladrões que seriam crucificados ao seu redor e até soldados jogando dados, apostando para ver quem ficaria com as roupas de Jesus.
O fim do zigue-zaque leva ao adro da igreja e aos profetas. Todo conjunto é lindo e os jardins foram parcialmente projetados por Burle Marx, que foi contratado para repensar o paisagismo do morro e entregou o projeto em 1974.
Por: 360 Meridianos
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