Cena 1: Narizinho, Pedrinho e Emília, exploradores da imaginação infantil, quando faziam as reinações idealizadas por Monteiro Lobato, acabavam por levar umas palmadas. Não eram interpretadas como um castigo imoderado, mas sim uma conduta educativa.
Cena 2: Os pais, e até mesmo os professores, faziam uso da vara de marmelo para aplicar castigo em crianças indisciplinadas. Era considerada conduta coerente como um instrumento punitivo.
No último mês de junho foi sancionada a Lei 13.010/14, conhecida como “Lei Menino Bernardo”, em referência ao conhecido caso de violência ocorrido no sul do país, que proporcionou algumas importantes modificações no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90) e, certamente, irão refletir na sociedade ao longo dos próximos anos.
Inicialmente, tem-se a introdução do artigo 18-A ao ECA, que garante às crianças e adolescentes o direito de serem educados sem o uso de castigos físicos; de tratamento cruel ou degradante. Sendo assim, referido artigo traz, em parágrafo único, as importantes definições para melhor entendimento e aplicabilidade:
Art. 18-A, Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I – castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II – tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.
Ainda inovando, a mesma lei traz o artigo 18-B, ao ECA, que prevê sanções notadamente de cunho administrativo, a quem infringir a regra anteriormente descrita:
Art. 18-B Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
III – encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
IV – obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
V – advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.
Sendo assim, percebe-se que a nova lei procura evitar que pais imponham castigos físicos aos filhos, prevendo sanções que podem ser rapidamente aplicadas, tendo em vista a atribuição do Conselho Tutelar para tanto.
Nada obstante, deve-se sempre indagar: é dever do Estado a intromissão no planejamento familiar e na consequente maneira optada para educar os filhos?
Referida questão ganha extrema importância quando se traz à baila dois artigos fundamentais sobre o assunto: o primeiro é o artigo 26, item 3, da Declaração Universal de Direitos Humanos – o Brasil é signatário – no sentido de que Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.
O segundo, dando continuidade à regra anterior, é o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, dispondo que: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Desta feita, verifica-se que nossa própria Lei Maior garante aos pais livre gerência da sociedade conjugal, certamente abarcando a opção de educar os filhos. Cabe ao Estado, apenas, fornecer meios para que essa escolha possa ser efetivada. Contudo, eventual ingerência na liberdade já garantida, parece se tornar abusiva.
Evidentemente, qualquer tipo de abuso dos pais ou responsáveis deve ser tutelado por nosso ordenamento. Ocorre que já existem tutelas que podem se demonstrar eficazes, desde que aplicadas de maneira coesa com o sistema e com nossa sociedade.
Quer-se com isso dizer que, uma vez verificado excesso no castigo imposto, podem os pais ou responsáveis perder o poder familiar; a criança ou adolescente serem colocados em família substituta; a conduta praticada incidir em algum crime tipificado no nosso Código Penal ou na legislação penal extravagante (tortura, por exemplo).
Desta feita, cabe uma análise e controle rigorosos das pessoas envolvidas nessas fundamentais questões. O Conselho Tutelar foi idealizado justamente para acompanhar essa relação pais e filhos e tomar providências (ou, se necessário, acionar imediatamente o Poder Judiciário ou Ministério Público).
Logo, eventual ingerência estatal, a fim de proibir todo e qualquer castigo físico, de forma genérica, parece violar uma liberdade atribuída pela lei mais importante de nosso ordenamento, a Constituição Federal. O animus corrigendi, válvula de escape durante muito tempo do crime de maus tratos (art. 146 CP) cabe, no âmbito doméstico, aos pais e responsáveis, desde que não excedam e nem abusem dos meios de correção e disciplina.
Cabe ao livre arbítrio dos pais decidir se repreenderão seus filhos com uma palmada ou não, observando que o ideal seria a via do diálogo proposta por Foucault. Ou até mesmo a inocência do Sítio do Picapau Amarelo. De todo modo, resta bastante evidente que a utilização de castigos violentos, torturas, degradação, podem e devem ser coibidas pelo Estado, que já dispõe de meios eficientes para tanto.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado e reitor da Unorp – Centro Universitário do Norte Paulista.
Antonelli Antonio Moreira Secanho, advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação “lato sensu” em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.
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