Cirurgia plástica em excesso “enfeia” ao invés de embelezar
28 de julho de 2018

Pouco tempo atrás, a escritora americana Stacy Schiff desfrutava uma linda tarde ao lado de um amigo francês que visitava Nova York pela primeira vez. No fim do dia, porém, ele mostrou-se intrigado. Queria saber o que havia acontecido com as pessoas mais velhas na cidade. Seus rostos eram esticados demais, lustrosos demais. Em Paris, disse ele, os velhos pareciam velhos — e não havia nada de errado nisso. A idade do amigo francês de Stacy: 8 anos. Sim, até mesmo uma criança mais observadora pode perceber que algo de estranho vem ocorrendo. E não só em Nova York, é claro.

Basta ir a shoppings e restaurantes de qualquer grande cidade brasileira, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, para deparar com pessoas de pele alaranjada (sessões de bronzeamento artificial podem dar esse efeito), maçãs do rosto salientes, testa estirada, lábios inflados e dentes branquíssimos, de uma alvura inexistente na natureza. E um contingente que, pelo jeito, tende a aumentar, graças aos avanços técnicos e ao barateamento dos procedimentos estéticos. Ficou mais fácil, enfim, fazer uma intervenção atrás da outra — e isso dá vazão à obsessão doentia pela manutenção da beleza e juventude.

“O resultado dessa obsessão são bizarrices produzidas por falta de bom senso não só dos pacientes, como dos próprios médicos”, diz o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica — Regional São Paulo, João de Moraes Prado Neto.

Não há nada de errado em querer consertar uma falta de acabamento congênita, melhorar a silhueta castigada pelo excesso de comida e pelo sedentarismo ou atenuar as marcas do tempo. É uma forma perfeitamente compreensível e legítima de conservar (ou restaurar) a auto-estima.

Um nariz menos adunco, uma ruguinha cancelada, uns quilinhos aspirados — e eis que a beleza deixa de ser apenas a promessa de felicidade, para citar a frase do escritor francês Stendhal. A questão é quando se exagera na dose. Tem-se aí uma patologia. Pessoas que não se cansam de encontrar defeitos ao espelho (na maioria das vezes, inexistentes) e, para corrigi-los, perseguem compulsivamente um padrão estético inatingível sofrem do que os médicos chamam de transtorno dismórfico corporal. Descrito em 1987 pela Associação Americana de Psiquiatria, o distúrbio, nos casos mais graves, causa ansiedade e depressão profundas — e pode levar a pessoa a deformar-se nas mãos de cirurgiões inescrupulosos.

Rosto de Carla Bruni sem cirurgia plástica

Rosto de Carla Bruni sem cirurgia plástica

Rosto de Carla Brubi simulando várias cirurgias plásticas

Rosto de Carla Brubi simulando várias cirurgias plásticas

  1. Há equilirio entre os três terços da face: testa, nariz e lábios e queixo;
  2. As maçãs do rosto são projetadas, o que lhe dá um
    aspecto jovial incomum para os seus 40 anos;
  3. Seu contorno mandibular é bem marcado,conferindo-lhe um rosto anguloso;
  4. Apesar de muito finos, os lábios são proporcionais ao nariz, o que é imprescindível para a harmonia do rosto. Além disso, seus dentes são perfeitos;
  5. O nariz não é exatamente um modelo, mas está de acordo com o resto da face. Rudo indica que ela fez uma
    rinoplastia – cujo resultado ficou bom.
  1. O preenchimento no lábio superior, com cerva
    de 2 milímetros de uma substância temporária como o ácido hialurônico causa o efeito “bico de pato”. O exagero encurta a distância entre o lábio e a base do nariz;
  2. O uso indiscriminado de toxina botulínica
    para atenuar as rugas da testa deixa as sobrancelhas arqueadas;
  3. Um preenchimento de cerca de 2 milímetros
    em cada uma das maçãs do rosto, no caso de Carla Bruni, já seria suficiente para deixar os malares proeminentes demais;
  4. o nariz ficou mais arrebitado – de todas
    as intervenções imaginártias, essa foi a que menos comprometeu o rosto de Carla Bruni.

 

Um estudo inédito conduzido pela médica Luciana Conrado, com 350 pacientes da dermatologia do Hospital das Clínicas, de São Paulo, constatou que 14% deles apresentavam o problema. Nos consultórios dos plásticos, a incidência fica em torno de 10%. Há vítimas de dismorfia que chegam a submeter-se a nove cirurgias de nariz. Existem ainda aquelas que praticam uma espécie de turismo médico, batizado pelos especialistas de “doctor shopping”: rodam de consultório em consultório em busca de sugestões sobre o que deveriam mudar em sua imagem. “É uma seqüência sem botão de desligar: o paciente sempre acha que o que fez é pouco”, diz o psicanalista Niraldo de Oliveira Santos, da divisão de psicologia do Hospital das Clínicas. “Para ele, o corpo é um rascunho onde tudo pode ser experimentado.”

Como ninguém faz nove plásticas de nariz sem que haja um cirurgião disposto a cometer excessos, tem-se aí um duplo problema. “É a pior combinação: o paciente que quer fazer tudo somado ao médico sem escrúpulos que o submete a procedimentos incontáveis e desnecessários”, diz o dermatologista Guilherme de Almeida, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. Ele próprio já conduziu uma paciente até um consultório psicológico, porque ela simplesmente não se convencia de que não precisava fazer mais nada no rosto. A terapia não ultrapassou três sessões. A paciente, que nunca mais apareceu no consultório de Almeida, provavelmente deve ter achado outro doutor que lhe satisfizesse as neuroses. “Tais pacientes gastam fortunas com tratamentos estéticos sem se dar conta de que isso pode causar-lhes defeitos irreversíveis”, diz a médica Luciana Conrado.

A dismorfia manifesta-se com mais freqüência na dermatologia por causa dos procedimentos menos invasivos, com resultados mais imediatos e recuperação mais rápida. O tratamento do distúrbio consiste em terapia associada ao uso de antidepressivos e antipsicóti-cos. Nos Estados Unidos, um paciente com dismorfia leva, em média, doze anos para buscar ajuda especializada. Nesse meio-tempo, o maior risco que ele corre é cair nas mãos de um profissional mal-intencionado. É esse tipo de médico que lhe dá a chancela para puxar, esticar, levantar, tirar e colocar próteses, sem que haja necessidade real para tais intervenções.

Tamanho é o poder de convencimento dos médicos que está em curso um novo fenômeno no universo das cirurgias cosméticas: o do tratamento preventivo. É uma maneira de abocanhar um filão de gente muito jovem, que nem deveria estar pensando em Botox ou plástica. Moças com pouco mais de 20 anos agora aplicam injeções de toxina botu-línica na testa para prevenir as futuras ugas de expressão Mulheres de 35 anos submetem-se a liftings — chamados eufemisticamente de mini-liftings, embora nenhum procedimento que requeira anestesia, corte e descolamento da pele possa ser considerado mini. Antes dos 40 anos também, muitas fazem os primeiros preenchimentos. O argumento por trás do tratamento preventivo é mexer um pouco já para evitar grandes intervenções lá na frente. O resultado? Mulheres de 30 anos que se parecem com mulheres de 40 tentando aparentar 30. Esquisito? Sim, esquisitíssimo, mas é o que vem ocorrendo. “Quanto mais intervenções são feitas, mais rígida fica a pele. A paciente adquire as feições de uma estátua, deixa e ter uma expressão natural”, disse a VEJA o médico francês Yves-Gérard Illouz, o inventor da li-poaspiração. Ficam todos — porque há inúmeros homens que se enquadram nesse caso — assustadoramente iguais uns aos outros. Como se tivessem saído (com defeito de fabricação) da mesma linha de produção. E a máscara da plástica.

” Desconfie de médicos que produzem pacientes com rosto parecido”, escreveu em seu livro Beauty Junkies (Viciados em Beleza) a jornalista Alex Ku-czynski, colunista do jornal americano The New York Times. Alex fez sua primeira incursão no mundo da plástica aos 28 anos, com uma aplicação de Botox. Aos 30, já havia se submetido também a uma lipoaspiração e a uma cirurgia para remoção de bolsas de gordura sob os olhos. Alex é uma bela mulher em seus 40 anos. Conseguiu perceber a tempo que poderia iniciar uma viagem sem volta em busca da perfeição – tendo como destino final o desastre completo. No livro, ela faz outro alerta: as adolescentes estão sendo induzidas à dis-morfia. É uma preocupação fundamentada. Entre as colegiais americanas, próteses mamárias viraram presente de formatura. Elas almejam ser uma Pamela Anderson ou uma Victoria Beckham — magras e peitudas. A indústria das celebridades, evidentemente, tem um papel nefasto no estabelecimento de padrões estéticos atingíveis apenas por meio de plásticas ou intervenções dermatológicas. Para não falar de reality shows como Extreme Makeover e Dr. Hollywood, que fazem a transformação radical parecer algo tão simples quanto mudar o corte do cabelo. Nesses programas, passa-se ao largo dos riscos de complicações, da dor e do desconforto do pós-operatório.

Não é incomum que um cirurgião plástico acredite ser, além de médico, um artista capaz de operar rodígios. Há páginas de médicos na internet que se anunciam como “alquimistas da estética”, seja lá isso o que for. Assim, é comum um paciente entrar na sala de operação para procedimentos pré-acer-tados com o cirurgião e sair de lá com a notícia de que “aproveitando a anestesia” ele foi um pouco além. “Em uma das lipoaspirações que fiz, entrei para corrigir a barriga e o culote, mas o médico acabou tirando gordura das costas e da parte interna das coxas”, conta a paulistana Márcia Sanchez, de 42 anos, duas lipos, uma plástica no abdômen e três rinoplastias. “Em outra ocasião, pedi apenas para diminuir um pouco o dorso do nariz e o cirurgião levantou a ponta, deixando-o arrebitado contra a minha vontade”, diz.

Procedimento
1980
2007
Comentário
Lipoaspiração
5 p/ dia
628 p/dia
A lipoaspiração está mais segura e menos dolorida. Com cânulas finíssimas, não requermais anestesia geral e exige, em média, 2 dias de recuperação – no passado, era uma semana de repouso absoluto.
Prótese Mamária
14 p/ dia
292 p/ dia
Há quinze anos as próteses de silicone
costumavam deixar as mamas endurecidas. Revestidas de uma esponja especial, as novas próteses provocam uma resposta menos agressiva ao organismo. Com isso, o implante ganha uma aparência mais natural
Lifting 66 p/dia 316 p/ dia Até meados dos anos 80, o cirurgião esticava a pelo do rosto do paciente em direção as orelhas. Agora, os músculos também são trabalhados e o estiramento é feito em direção ao topo da cabeça. A aparência fica mais natural.
Rinoplastia
13 p/dia
126 p/ dia
Trinta anos atrás raspava-se o dorso do nariz,
o que naturalmente deixava a ponta baixa demais. Em busca de proporções mais simétricas, hoje, além de não se raspar tanto o dorso, levanta-se a ponta do nariz com enxerto de cartilagem 

Por vender a ideia de que é possível ter o corpo dos sonhos, o rosto perfeito, a cirurgia plástica é uma das áreas mais lucrativas da medicina. Isso é bom porque favorece o desenvolvimento constante de novas tecnologias. E os avanços tornaram os procedimentos acessíveis a uma quantidade enorme de pessoas. O lado sombrio é que a busca por um ideal de beleza inatingível e pela eterna juventude alcançou proporções preocupantes. “A popularização da cirurgia plástica nos últimos anos motivou tanto os cirurgiões quanto os pacientes a pensar no corpo não como algo que pode, mas que deve ser melhorado”, disse a VEJA o professor de comunicação John Jordan, da Universidade de Wisconsin-Milwaukee, nos Estados Unidos. Em uma cultura obcecada pela aparência (na verdade, por uma aparência pasteurizada) e juventude, as pessoas que não têm a intenção de mexer no próprio corpo passam por desleixadas. Esse tipo de distorção já motivou campanhas, entre os americanos, contra a obsessão pela plástica. Em uma delas, uma mãe exibe um cartaz ao lado das duas filhas, com a seguinte frase: “Eu não preciso de cirurgia plástica porque quero que minhas filhas se pareçam comigo”.

Número máximo de procedimentos
Lipoaspiração 1 procedimento deveria ser suficiente. Afinal a técnica destina-se a remoção de gorduradas camadas mais profundas do organismo. Hoje está virando substituto para a dieta e a ginástica
Rinoplastia 1 procedimento deveria bastar. Há pacientes que fazem até 9…
Lifting 4 procedimentos é o máximo que uma pessoa pode se submeter. Os efeitos duram de 8 a 10 anos e submeter-se
antes dos 40 é desnecessário, dizem os médicos
responsáveis
Botox 6 aplicações é o número máximo pois a partir daó o organismo tende a desenvolver resistência ao produto.

 Conselho dos médicos sérios para mulheres e homens que querem melhorar o aspecto físico, mas sem vestir a máscara da plástica? “A chave do rejuvenescimento está em evitar mudanças drásticas, principalmente no rosto”, diz o cirurgião Prado Neto. Antes de mais nada, é preciso entender que o conceito de belo envolve proporção, simetria e equilíbrio. A beleza do rosto de uma mulher está nas maçãs salientes, nos lábios carnudos, nos seios razoavelmente fornidos. No rosto de um homem, ela está expressa principalmente na ossatura angulosa. Mas, como a face não é feita de estruturas isoladas, sua harmonia está no conjunto. Às vezes, uma rinoplastia para reduzir o nariz é uma péssima idéia. Dependendo do formato do rosto, o nariz pequeno destrói a simetria facial, ao criar a impressão de que os olhos ficaram próximos demais. Os famosos lábios de Angelina Jolie são resultado de uma combinação harmoniosa. No rosto de outra pessoa, podem ser — e são em grande parte das vezes — um desastre estético. É possível chegar enxuta (ou enxuto) aos 60 anos, sem destruir a beleza do tempo vivido. Feio é querer aparentar vinte anos a menos. Essa história nunca acaba bem. A menos, é lógico, que você ache a máscara da plástica um ótimo padrão estético.


Fonte: Veja