A volta do trem-bala
6 de julho de 2023

Para a TAV Brasil, modelo de autorização garante mais atratividade ao projeto de ligação Rio-São Paulo.

A autorização dada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), no último dia 23 de fevereiro, para a construção de uma ligação ferroviária de alta velocidade entre as duas maiores capitais do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, surpreendeu todos que acompanharam de perto a ascensão e o fracasso de uma das grandes promessas das gestões petistas no passado.

O trauma da não concretização do trem-bala pode explicar a rapidez com que o atual governo tratou de afirmar que não tem nenhum interesse nele no momento. Para a TAV Brasil, agora autorizatária do trecho, o fato de o novo projeto não ter qualquer amarra pública é o que faz aumentar a convicção de que, dessa vez, o trem de alta velocidade Rio-São Paulo poderá (finalmente) sair do papel.

O desafio, no entanto, continua enorme. E agora está focado na questão da financiabilidade de um projeto que precisa se tornar realidade de forma 100% privada, com estimativas (por alto) de custos de R$ 50 bilhões. Os estudos de engenharia, que têm previsão de ficarem prontos no final do ano que vem, vão refinar esses valores e detalhes de extensão e infraestrutura. O fato é que com capital social de R$ 100 mil, a TAV Brasil sabe que o projeto depende da chegada de investidores dispostos a encarar sua complexidade.

Segundo o CEO da empresa, Bernardo Figueiredo, a ideia é tentar trazer financiamento de fora do país e vinculado à prestação do serviço. Por exemplo, fechar acordo com uma construtora que possa trazer crédito para a obra.

Com o operador, que traria o financiamento dos equipamentos/material rodante. “Estamos privilegiando buscar essas linhas associadas ao fornecimento, mas a priori, não descartamos nada”, afirma Figueiredo. A empresa não dispõe ainda de alavancagem financeira para um projeto dessa magnitude, mas pode-se dizer que conhecimento sobre ele, sim. Bernardo Figueiredo foi diretor-geral da ANTT na época em que se começou a discutir o trem de alta velocidade no governo Lula, em 2007.

Antes disso, participou como consultor de um projeto iniciado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1999, em parceria com a alemã Deutsche Bahn. O estudo tinha o objetivo de apontar soluções para eixo Rio-São Paulo, e a conclusão foi de que o trem-bala seria a melhor opção para o transporte de passageiros entre as duas cidades.

Em 2012, Figueiredo foi indicado pela então presidenta Dilma Rousseff à presidência da Etav, estatal criada especificamente para estudar e licitar o projeto do trem-bala (que mais tarde se tornou EPL-Empresa de Planejamento e Logística, e hoje está fundida com a Valec na Infra SA). “Conversei com todos os agentes, operadores, construtores, empreendedores de trens de alta velocidade no mundo durante seis anos. Foi um processo muito estudado e discutido nos mínimos detalhes.

Essa experiência me mostrou que esse projeto tem toda a lógica do mundo”, afirma Figueiredo, categórico, acrescentando que poucos dias depois de assinar o contrato de autorização com a ANTT, a TAV Brasil foi procurada espontaneamente pelos atores que demonstraram interesse no projeto brasileiro no passado. “Esse projeto é tão conhecido internacionalmente e tão atrativo para quem o conhece que a gente já foi procurado por quase todo mundo. Já estamos em conversas com todas as grandes possibilidades.

Os principais atores são os espanhóis, os chineses, os coreanos e os franceses”. Nessa empreitada da TAV Brasil estão ainda Marcos Joaquim Alves, sócio da M.J. Alves e Burle Advogados, que vem cuidando da parte jurídica e de regulação, e Paulo Benites e Daniel Suh, ambos da Global Ace. Benites e Suh tem uma história profissional ligada ao projeto de trem de alta velocidade no Brasil.

Eles assessoraram os coreanos na época em que este se preparava para apresentar uma proposta na prometida licitação do governo brasileiro. Atratividade A convicção de Figueiredo sobre a viabilidade do projeto vem do fato de que, segundo ele, quando foi estruturado dentro do modelo de concessão já se mostrava viável e atrativo mesmo com alguns atributos que geravam riscos para a inciativa privada.

Por exemplo, a reversão dos ativos para a União após 30 anos e algumas questões que envolviam interesse público, como tarifa-teto e transferência de tecnologia de implantação e desenvolvimento do trem-bala no país. No modelo de autorização, a empresa tem o direito de explorar o trecho ferroviário por 99 anos renováveis por igual período. Os ativos não são revertidos à União, a empresa fica livre de cobrar qualquer tarifa do passageiro, não há demanda mínima e nem obrigatoriedade no sentido de transferir a tecnologia implantada. “Pela análise dos estudos de demanda e de engenharia na época, eu via que o projeto tinha números consistentes, mostrava viabilidade e repercussão internacional. Agora, sem essas restrições de concessão pública e com liberdade empresarial, as condições de atratividade melhoraram muito”, acredita Figueiredo.

Por outro lado, o modelo de autorização traz algumas questões caras à iniciativa privada, como a possibilidade de mais de uma empresa apresentar uma solicitação para o mesmo trecho de origem e destino. De acordo com a resolução que regulamenta os pedidos feitos à agência, é possível existirem duas (ou mais) ferrovias paralelas que ligam a mesma origem e destino.

A justificativa da ANTT é que o modelo não deve trazer a ideia de que há um vencedor nos processos de autorização de novas linhas ferroviárias. É certo que tirar do papel um projeto bilionário como o trem de alta velocidade Rio-São Paulo é uma missão árdua para uma empresa, que dirá duas. Mas Figueiredo reconhece que esse é um problema no modelo de autorização, uma vez que aumenta o risco privado e pode ser um fator dificultoso na busca por financiamentos. “Eu sempre defendi que deveria ter um processo de seleção quando houvesse mais de um pedido para o mesmo trecho”, diz.

Outro desafio que envolve o projeto do TAV Rio-São Paulo é o fato de não haver histórico no mundo para fazer comparações, uma vez que nos países que dispõem dessa tecnologia quem construiu o trem-bala foi o governo, para depois repassar a operação para a iniciativa privada (ou não). Paulo Benites, da Global Ace, admite que essa autorização é um caso inédito, mas pontua que a maior parte dos sistemas existentes no mundo já se pagou, ou seja, foi retornado o capital público investido. “Quando enxergamos a demanda, a tarifa que gera uma receita e a oportunidade imobiliária temos convicção. Pretendemos construir um projeto sólido, robusto, que atraia o investidor privado. Dinheiro privado existe e muito”, diz.

Sem dinheiro público Figueiredo conta que o projeto de trem-bala elaborado à época pelo governo federal não incluía em sua estruturação financeira subsídios públicos para implementação e operação do sistema. “Nunca teve nem promessa nem reivindicação de participação de dinheiro público. Mas o financiamento precisava ser atrativo. Os japoneses e os chineses, por exemplo, pediram na época que o governo assumisse o risco de demanda. E ele não ia assumir. Essa foi uma questão que afastou os japoneses e os chineses dos leilões”.

Há algumas nuances em relação a esse assunto. De fato, aporte público diretamente aplicado no projeto não era vislumbrado, mas para tornar o trem de alta velocidade atraente ao setor privado, o governo criou uma linha de financiamento específica, que seria concedida pelo Tesouro Nacional, por meio do BNDES. O valor acordado para financiamento do trem-bala era de cerca de R$ 20 bilhões durante 30 anos – em 2010 o projeto estava avaliado pelo governo em R$ 34,6 bilhões. Os juros, definidos na antiga TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), eram abaixo do mercado, e poderiam reduzir ainda mais se houvesse frustração na demanda de passageiros prevista no edital de licitação.

Essa foi a lógica econômica do projeto do governo. Uma dificuldade na época era o risco de construção, na visão das empreiteiras nacionais. Essas empresas, que estavam em processo de formação de consórcio com as fornecedoras estrangeiras da tecnologia, tinham dúvidas em relação à demanda projetada para o trem e ao custo estimado para a obra. Enquanto o governo falava em um empreendimento de R$ 33 bilhões, as empreiteiras avaliavam um desembolso de até R$ 60 bilhões.

 

Esse foi um dos motivos que levou o governo a adiar o primeiro leilão em novembro de 2010. A empreiteiras queriam mais tempo para avaliar o negócio e avançar na formação dos consórcios com as detentoras da tecnologia. O adiamento frustrou os coreanos, que estavam dispostos a apresentar proposta mesmo que sozinhos. Eles chegaram a montar uma estrutura robusta de estudos do projeto no Brasil, e com a desistência do governo, acabaram se retirando do páreo.

Em 2011, dois leilões sucessivos foram adiados novamente, devido à falta de garantia de apresentação de propostas. Em 2012, foi anunciada uma mudança no edital de licitação. Ao invés de contratar obra e operação juntos, o governo decidiu definir primeiramente a empresa que iria operar o sistema. Nesse modelo de contratação, o operador deveria pagar um valor mínimo pelo uso da infraestrutura. Com esse dinheiro, o governo faria a obra. O leilão com esse novo modelo seria realizado em setembro de 2013. Mas em agosto daquele ano foi decidido adiá-lo mais uma vez. A essa altura, o trem de alta velocidade já vinha recebendo críticas pelo alto volume de investimento, que poderia ser substituído por dezenas de quilômetros de metrô pelo país. Esse argumento ganhou mais força com as manifestações de junho de 2013, que teve como reivindicação inicial a precariedade e as altas tarifas de transporte público nas cidades brasileiras. O trem-bala acabou, então, sendo retirado da lista de prioridades do governo federal. “Foi uma decisão política, não técnica. Construiu-se um ambiente político negativo para o projeto.

Agora, não existe esse componente político, então é menos uma coisa que atrapalha o negócio”, comenta Figueiredo. Diferente do original Paulo Benites está à frente dos estudos da parte técnica do novo projeto, que traz diferenças significativas daquele elaborado pelo governo no passado. A intenção da TAV Brasil foi enxugá-lo. A começar pelo traçado: de 511 km passou para 378 km (de acordo com o projeto da TAV Brasil entregue à ANTT).

O projeto do governo previa a interligação das cidades do Rio de Janeiro (estação Leopoldina), São Paulo (Campo de Marte) e Campinas; conexão dos aeroportos Internacionais do Galeão, de Guarulhos e Viracopos; e a presença de uma estação intermediária no trecho do Vale do Paraíba fluminense e outra no trecho paulista.

A TAV Brasil decidiu retirar do traçado a interligação com os aeroportos – o que, segundo Benites, é fundamental não só para reduzir custos, como também a complexidade da engenharia e o consequente aumento do risco do projeto. Para chegar ao Galeão, por exemplo, a ideia no passado era construir um túnel submarino passando pela Baía de Guanabara. “Isso para nós é um custo que não tem justificativa. As pessoas que chegam ao Rio querem ir para Barra ou Centro”. Em seu traçado, cuja maior parte será em superfície, a TAV Brasil conseguiu retirar quase 20 km de túneis que estavam previstos no
projeto do governo federal. Barra da Tijuca e Centro são os bairros cariocas que devem receber estações do TAV, segundo Benites. Como isso vai acontecer, ainda não se sabe. O especialista diz que é preciso iniciar uma série de conversas com diversos stakeholders.

No projeto entregue para a ANTT, o traçado prevê a chegada do trem em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, onde há uma estação da SuperVia. “A estação não será em Santa Cruz. Vai haver uma extensão de linha. Existe um ramal de trem lá. Quem sabe a gente não possa usar a faixa de domínio e economizar quilômetros de desapropriações? Temos que sentar e conversar”. Outra quase certeza é que o trem deverá ter estações em Volta Redonda (RJ) e em São José do Campos (SP). Um projeto que cairá como uma luva para o TAV é o Trem Intercidades até Campinas, hoje em processo de licitação pelo governo de São Paulo.

A ideia é que o trem de alta velocidade possa fazer conexão na capital paulista com o TIC (talvez próximo a uma estação da Linha 7-Rubi da CPTM). E no meio de toda essas definições está o componente imobiliário, o chamado Real Estate. “Trata-se de uma fonte de recursos fundamental para viabilizar o projeto. Vamos buscar ou criar novas áreas que possam ser interessantes para esse tipo de exploração. O número de estações, inclusive, vai depender desse tipo de avaliação”, ressalta Benites. A demanda de passageiros – ponto polêmico do projeto desde os primórdios – será objeto de estudos mais específicos por parte da empresa. “Hoje existe uma demanda bastante ativa. E outra que não conseguimos nem mensurar ainda. Temos que ter níveis de serviço combinados com uma tarifa atrativa, para que a gente consiga atrair o usuário do avião, do automóvel e do ônibus”, diz Benites.

Para Figueiredo, há uma questão que é uma unanimidade nas conversas com players internacionais: “Eles sabem que não existe lugar no mundo em que 40 milhões de pessoas vivem num eixo de 400 quilômetros”. Formalmente, a ANTT exige das autorizatárias a apresentação da licença prévia do empreendimento em três anos após a assinatura do contrato, sob pena de cassação da autorização. A TAV Brasil tem, portanto, o prazo até o início de 2026 para conseguir a primeira licença. Essa exigência não é tão rígida, uma vez que a agência abre espaço para prorrogação dos prazos mediante justificativa da autorizatária.

No projeto entregue à ANTT, a empresa estipulou junho de 2032 como a data de início da operação do trem de alta velocidade pela TAV Brasil. Por parte dos passageiros que sonham com a ligação, resta aguardar e torcer.

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