Desde que as notícias do ataque a tiros contra o ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe foram divulgadas na sexta-feira (08/07), mensagens circulam entre amigos e conhecidos, todas com uma mesma pergunta: como isso pode ter acontecido no Japão?
Além disso, a identidade da vítima só torna a notícia mais chocante. Shinzo Abe não era mais o primeiro-ministro do Japão, mas ainda era uma importante figura na vida pública japonesa e provavelmente o político mais conhecido no país das últimas três décadas.
Quem iria querer matar Abe? E por quê?
O que seria algo equivalente — algum outro ato de violência política igualmente chocante para a população local. O que vem à mente é o assassinato a tiros do primeiro-ministro sueco Olof Palme em 1986 ou mesmo o assassinato do presidente americano John F. Kennedy em 1963.
Palme foi atacado a tiros em uma rua movimentada em pleno centro de Estocolmo, no primeiro assassinato de um líder político nacional na Suécia desde 1792. A motivação do crime nunca foi esclarecida.
Quando digo que as pessoas não pensam em crimes violentos aqui no Japão, não é exagero.
Em 2020, houve 32 mortes atribuídas a armas de fogo no Japão, segundo o Small Arms Survey, que monitora esse tipo de violência globalmente. O Japão tem aproximadamente 125 milhões de habitantes — a título de comparação, o Brasil tem 212 milhões de habitantes e registrou 39 mil homicídios por arma de fogo em 2020.
Sim, existe a Yakuza, a famosa máfia do Japão. Mas a maioria das pessoas nunca tem contato com ela. E mesmo a Yakuza evita armas, porque as penalidades por posse ilegal simplesmente não valem a pena.
Ter uma arma no Japão é extremamente difícil. Exige não ter antecedentes criminais, treinamento obrigatório, avaliação psicológica e extensas verificações do passado da pessoa, incluindo a polícia entrevistando vizinhos.
Consequentemente, o crime com armas virtualmente não existe aqui. Em média, há menos de dez mortes relacionadas a armas de fogo no Japão a cada ano. Em 2017, foram apenas três.
Não é de se admirar então que, após o atentado contra Shinzo Abe, grande parte da atenção tenha se voltado para o atirador e a arma que ele usou.
Quem é ele? De onde ele tirou a arma? A mídia japonesa relata que o homem de 41 anos é um ex-membro das forças de autodefesa do país, equivalentes às Forças Armadas.
Mas uma análise mais detalhada mostra que ele passou apenas três anos na Marinha.
A arma que ele usou é mais curiosa. Fotos dela no chão após o tiroteio mostram o que parece ser uma arma caseira. Dois pedaços de cano de aço colados com fita adesiva preta, com algum tipo de gatilho feito à mão. Parece algo produzido a partir de instruções obtidas na internet.
Então, trata-se de um ataque político deliberado ou o ato de alguém delirante, alguém que queria se tornar famoso, atirando em alguém famoso? Até agora, não sabemos.

CRÉDITO,GETTY IMAGES Legenda da foto, A notícia chocou um país que se orgulha da segurança pública
Nos últimos anos, vimos outro tipo de crime se tornar mais comum aqui. O homem quieto e solitário com rancor contra alguém ou alguma coisa.
Em 2019, um homem incendiou um prédio que abriga um estúdio de animação popular em Kyoto, matando 36 pessoas.
O homem disse à polícia que tinha rancor contra o estúdio, porque ele “roubou seu trabalho”.
Em outro caso em 2008, um jovem dirigiu um caminhão contra uma multidão de consumidores no distrito de Akihabara, em Tóquio, depois saiu do veículo e começou a esfaquear pessoas que assistiam à cena. Sete foram mortas.
Antes de realizar o ataque, ele havia postado uma mensagem online dizendo: “Vou matar pessoas em Akihabara” e “Não tenho um único amigo, sou ignorado porque sou feio. Sou pior do que lixo”.
Ainda não está claro se o tiro de Abe se encaixa na primeira ou na segunda categoria. Mas parece certo que o assassinato mudará o Japão.
Dado o quão seguro o Japão é, a segurança aqui é muito relaxada. Durante as campanhas eleitorais, como a em curso atualmente, os políticos literalmente ficam nas esquinas fazendo discursos e apertando a mão de transeuntes.
É quase certo que foi por isso que o atacante de Abe foi capaz de chegar tão perto e descarregar a arma que ele mesmo construiu.
Isso certamente terá que mudar depois de hoje.
O Japão vai às urnas no domingo (10/07) para renovar a Câmara Alta do Parlamento. Depois do atentado a Abe, o primeiro-ministro Kishida confirmou o calendário eleitoral e mandou reforçar a segurança de seus ministros.
O atual sistema de proteção dos políticos foi iniciado em 1975, após um incidente envolvendo o então premiê Takeo Miki. Agredido por um membro do grupo da extrema-direita quando participava de um funeral, ele passou a criticar a Polícia Metropolitana de Tóquio por não fazer o suficiente para garantir sua segurança.
Arma usada no assassinato
Foi com uma arma artesanal de 40 centímetros de comprimento que Tetsuya Yamagami, de 41 anos, tirou a vida do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe. Tetsuya Yamagami fez dois disparos com a arma, antes de ser imobilizado por seguranças. Ele não reagiu.
À polícia, ele admitiu a autoria do crime, disse ter planejado tudo há alguns meses e contou que estava insatisfeito com o ex-primeiro-ministro, por isso pretendia matá-lo.
Durante revista na casa do acusado, também em Nara, policiais encontraram objetos semelhantes à arma usada no atentado e outros explosivos.
Artefatos de produção doméstica têm incomodado a polícia nos últimos anos, mas se tornaram ainda mais preocupantes depois da popularização das impressoras 3D.

Esses aparelhos permitem fabricar em casa partes, peças e objetos inteiros, em diferentes tipos de materiais.
“Nós fiscalizamos, da mesma forma que fazemos com as convencionais, mas é muito difícil achar essas armas caseiras, porque hoje em dia qualquer pessoa pode comprar uma impressora 3D”, comentou um instrutor da Academia Nacional de Polícia.
“Temos que mudar as leis e melhorar o sistema de segurança.”
No caso de Abe, as autoridades não informaram se a arma caseira, que tinha dois cilindros envoltos com fita adesiva preta e fios à mostra, foi feita com uma impressora 3D ou não.
– O texto foi originalmente publicado em http://bbc.co.uk/portuguese/internacional-62101010
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