Único delito do animal foi comer galinhas numa propriedade dentro de unidade de conservação; ele foi resgatado e testes apontaram que é portador sem sintomas da aids dos gatos. ‘É duro ver um animal belíssimo, forte e jovem nessa situação’, lamenta veterinário
Passar a vida presa e em isolamento é o melhor que o destino pode reservar a uma onça-parda, cujo único delito foi comer galinhas, numa propriedade dentro de uma unidade de conservação em Sana. A onça corre risco de ser sacrificada, pois um diagnóstico ainda inconclusivo, porque altamente complexo, apontou que é portadora do FIV, o vírus da imunodeficiência felina, a Aids dos gatos. E, em conservação, é mais importante preservar a espécie do que um indivíduo.
Por lei, se as autoridades ambientais decidirem, a onça pode ser eutanasiada, embora seja assintomática. O drama da onça entre a prisão perpétua e a morte tem como causa a ação humana.
Ela foi capturada sem autorização e trancafiada por dias sem água e comida num galinheiro dentro de uma unidade de conservação — a Área de Preservação Ambiental (APA) de Macaé de Cima. O vírus que pode ter é associado a gatos domésticos.
Com vírus da Aids felina, onça-parda precisa ser adotada por instituição para não ser sacrificada
O FIV poderia ter sido transmitido por meio de arranhaduras, contato com sangue ou mesmo caso a onça tenha brigado ou comido um gato, que não deveria estar numa unidade de conservação.
Mas agora a onça-parda, ou suçuarana, depende da piedade de uma pessoa ou instituição com bom coração, autorização legal e recursos para mantê-la em segurança, num recinto amplo e tecnicamente adequado. É o que espera o veterinário Leandro Nogueira, chefe do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Cetas/Ibama), em Seropédica, na Baixada Fluminense, para onde a onça foi levada em outubro passado e que faz um chamado a quem possa ajudar o felino.
O Cetas não é zoo. É um centro de translocação. Recebe animais apreendidos ou resgatados, que são reabilitados e devolvidos à natureza. Quando isso não é possível, são enviados para zoos ou outras instituições especializadas em fauna selvagem.
Mas como a onça tem FIV, não pode ser libertada segundo as regras ambientais. Tampouco instituições que tenham outras onças podem ficar com ela, pelo risco de contágio. Ela precisa de um recinto grande para que se sinta em contato com a natureza, mesmo isolada de outros bichos. E isso, até agora, tem se mostrado impossível de conseguir, frisa Nogueira.
— A gente trabalha com conservação de espécie e não de espécimes. Mas é duro ver um animal belíssimo, forte e jovem quanto esse nessa situação. A eutanásia é o último recurso, enquanto puder, vamos segurar, claro. Mas é muito caro manter uma onça e não temos espaço adequado nem recursos. Ela está há meses num recinto pequeno, que seria para uma estada de poucos dias. Vive assustada com o barulho do trânsito pesado da vizinhança. Aqui é um local de passagem, não de permanência. Não sabemos até quando será possível mantê-la. A esperança é que seja adotada, dentro das condições legais — destaca Nogueira.
Martírio já dura mais de um ano
O martírio do puma começou bem antes. Já faz mais de um ano que a vida na floresta e a liberdade foram tirados da onça-parda. O animal não oferece perigo para o ser humano, e seu crime capital foi atacar o galinheiro de uma propriedade em Sana, dentro da APA de Macaé de Cima, em fevereiro de 2022.
Aprisionada ilegalmente em condições precárias pelo dono da propriedade, a onça foi resgatada por técnicos do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e pelo veterinário Jeferson Pires, chefe do Centro de Reabilitação de Animais Selvagens (Cras) da Universidade Estácio de Sá, referência no atendimento da fauna silvestre do estado do Rio de Janeiro.
A onça pesava apenas 18 quilos, era a imagem da fome. As onças-pardas do Sudeste não são animais grandes, diferentemente do que muita gente pensa. Pesam de 22 quilos a 70 quilos.
— A ideia era soltá-la de imediato. Mas sempre fazemos exames antes e esse animal estava debilitado. Um dos testes padrão que fazemos é o de anticorpos para FIV, que infelizmente deu positivo — lamenta Pires.
A onça passou meses no Cras em reabilitação e, quando foi para o Cetas, em outubro passado, pesava 24 quilos. É completamente assintomática. Uma onça normal, acentua Leandro Nogueira.
Um segundo teste realizado por Pires teve o mesmo resultado positivo. Já o exame de PCR (molecular) para gatos domésticos, deu negativo, sinal de que o vírus não estava em circulação no seu sangue, mas não prova de que não era portadora.
Pires ainda conseguiu que fosse realizado um segundo PCR, desta vez um desenvolvido para o puma americano, que é da mesma espécie, mas tem variações regionais. Também deu negativo. Não existem testes específicos para felinos selvagens brasileiros.
Um vírus ainda mal conhecido
A FIV pode ficar a vida toda assintomática no gato doméstico. Nos felinos silvestres não se sabe. Ele fica escondido na medula óssea e pode se manifestar num momento de fragilidade imunológica do animal.
Daqui a duas semanas, Jeferson fará uma biópsia da medula da onça. O resultado não mudará o destino do animal. Caso um novo e detalhado exame dê positivo, será a prova de que tem FIV, não, necessariamente, de que manifestará a doença. Se der negativo, o risco de o vírus persistir não terá sido ainda assim afastado e felino continuará em cativeiro.
— Com o nível atual de conhecimento sobre o FIV, a dúvida será para sempre. O que a gente mais queria era soltar esse animal. Mas isso colocaria, potencialmente, outros em risco. Salvar esse único indivíduo pode colocar em perigo toda uma população de onças — diz Pires.
Como os demais especialistas, ele torce para que algum refúgio de vida silvestre ou proprietário de terras com autorização e capacidade de construir e manter um recinto na natureza, grande e seguro, possa acolher a onça.
Um sinal de esperança
Especialista com doutorado e pós-doutorado em FIV, Sheila Medeiros, da Germsure Biosafe e Consultoria, vê esperança para o jovem puma. Ela observa que os testes rápidos de anticorpos para FIV podem dar resultado falso positivo devido à reação cruzada com outros vírus do mesmo grupo (lentivírus) normalmente encontrados em felinos silvestres. Ela diz que a transmissão do FIV em felinos silvestres geralmente se dá durante a gestação.
Lembra ainda que existem indícios de que o FIV é mais antigo nos felinos silvestres e para eles pode não ser perigoso, como o é para os gatos domésticos.
Essa é a mesma esperança de Nogueira. Ele torce para que pesquisas mostrem que o FIV circula normalmente em animais silvestres e não se manifesta neles. Pode ser que um dia isso seja provado, mas já será tarde para o puma preso em Seropédica.
— Ele está plenamente apto para voltar à vida na natureza. É um macho forte, não tem contato com ninguém, só com o tratador. É selvagem, viveria bem no mato de novo. O ser humano é que é uma ameaça para esses animais — frisa Nogueira.
É o caso de filhotes, cuja reintrodução na natureza é um processo caro e complexo. Há casos recentes em Cambuci e Bom Jesus do Itabapoana, ambos no Norte Fluminense. Aximoff também tenta buscar, junto com o Cetas, um benfeitor que receba o puma, mesmo ele tenha que ficar confinado em definitivo.
Fonte: O Globo
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