A escritora holandesa Elle van Rijn acaba de lançar “Órfãos de Amsterdã”, sobre um grupo de educadoras que ajudou a salvar mais de 600 crianças judias
No início do século 20, as mulheres começavam a ocupar postos de trabalho e, com isso, a exercer uma dupla jornada: nas fábricas e dentro de casa, onde ainda eram as principais responsáveis pelos cuidados com a família. Para ajudar as trabalhadoras que também eram mães, diversas creches começaram a ser criadas para cuidar dos filhos dessas mulheres durante o expediente.
Em 1906, em Amsterdã, um desses novos espaços era voltado apenas para famílias judias. Duas décadas mais tarde, devido ao crescimento da procura pelo serviço e à necessidade de formar mais educadores infantis, a creche passou a ocupar um prédio maior e foi modernizada: passou a contar com aquecimento central, água corrente e banheiros adaptados às crianças. Era a mais moderna da Holanda e começou a receber também crianças não judias.
O espaço acabou se tornando uma via para que crianças judias fossem salvas. Assim que os pais eram convocados para se apresentar aos campos de concentração, eles deixavam os pequenos com as cuidadoras, que então formavam uma rede que levava essas crianças para famílias não judias e que aceitavam protegê-las. Esse projeto de resistência salvou cerca de 600 bebês até o fim da Segunda Guerra Mundial.
A cuidadora judia Betty Goudsmit-Oudkerk foi uma das principais funcionárias a contribuir para o resgate dessas crianças. Antes de morrer aos 96 anos, em junho de 2020, ela conversou com a autora e atriz holandesa Elle van Rijn, que escreveu um romance baseado nas experiências da sobrevivente do Holocausto.
Órfãos de Amsterdam foi lançado em janeiro de 2023 no Brasil, pela editora Melhoramentos, e GALILEU teve a oportunidade de entrevistar a autora e entender como a obra foi concebida. Confira a conversa completa:
Como você chegou até essa história?
Eu ouvi uma notícia na rádio nacional que dizia que um homem chamado Johan van Hulst havia morrido aos 107 anos e que ele havia sido responsável por salvar cerca de 500 crianças durante a Segunda Guerra Mundial, junto com Henrietta Pimentel, diretora de um jardim de infância judaico. Eu já tinha ouvido essa história, mas não tinha ideia de que um número tão grande de crianças haviam sido salvas.
Também tenho um amigo que é diretor de TV e cinema que se chama Pollo de Pimentel (aqui esse sobrenome pode ser bem comum, mas na Holanda é raro). Comentei com ele que essa história podia estar ligada à família dele e, de fato, Henrietta era sua tia-avó, mas ele nunca chegou a conhecê-la, porque ela não sobreviveu à guerra.
Elle van Rijn se baseou em documento e relatos de sobreviventes do Holocausto para escrever “Órfãos de Amsterdam” — Foto: Divulgação
Então, nos interessamos muito por essa história e decidimos fazer uma série sobre ela. Comecei a fazer uma extensa pesquisa sobre o tema e fiquei chocada e tocada com a coragem das cuidadoras daquela escola judaica. Mas, mesmo depois de tanta pesquisa, o projeto para a TV não foi aprovado.
Em um domingo de manhã, me reuni com meu amigo e decidi que deveria escrever um livro, porque assim a história poderia se tornar maior e as chances de uma série ser produzida aumentariam também. Tecnicamente, isso é verdade, porque estamos trabalhando em um novo projeto de série agora. Não é 100% certeza de que vai ser feito, mas estamos trabalhando nisso.
Como você acabou conhecendo Betty Goudsmit-Oudkerk?
Quando comecei a pesquisar essa história a fundo, descobri que Betty era a única cuidadora que participou ativamente dessa organização e ainda estava viva. Li muitas coisas sobre a vida dela e fui percebendo que ela era minha favorita para a personagem principal, porque era muito engraçada também.
Então, entrei em contato com o filho dela e ele me disse que ela, aos 95 anos, estava vivendo em um asilo. Fomos visitá-la no último dia antes de fecharem todos os abrigos por conta da pandemia [de Covid-19] e tivemos uma longa conversa. Por mais que ela estivesse um pouco esquecida devido à idade, ela era muito astuta.
Eu perguntei como ela conseguiu reunir tanta coragem e autocontrole para salvar aquelas crianças. Teve uma vez, por exemplo, que ela estava carregando uma criança judia na bolsa e foi abordada por um soldado da SS [sigla para Schutzstaffel, organização paramilitar de Hitler] na rua. E ela agiu como se nada estivesse acontecendo!
A resposta dela [a mim] foi: “Na verdade, é muito simples. Você só precisa atuar. Eu queria ser atriz naquela época, mas não havia escolas para isso, estávamos em guerra. Acabei aprendendo dessa forma, tentando sobreviver.” Ela não podia demonstrar nervosismo ou que odiava aqueles soldados. Precisava fingir que tinha o controle da situação, mesmo que não tivesse. Além disso, ela era judia; estava naquela posição porque, no final das contas, também precisava se esconder.
Além de Betty, quem mais você acabou conhecendo por conta dessa história? Você encontrou alguns sobreviventes salvos por essa operação?
Sim, mas isso só aconteceu depois de terminar o livro. Entrei em contato com várias pessoas, mas muitas delas eram bebês quando tudo estava acontecendo, então elas não têm memórias daquele tempo.
Acabei descobrindo que um dos sobreviventes morava a cinco minutos da minha casa. Ele é um homem muito positivo e, depois de se aposentar, resolveu procurar quem o escondeu dos nazistas no norte da Holanda. As pessoas que o ajudaram a sobreviver foram reconhecidas pelo Yad Vashem [centro de estudos e memorial do Holocausto em Israel] por terem ajudado a salvar judeus. Essa se tornou a missão de vida dele.
Antes de Órfãos de Amsterdã, você já havia publicado livros com temáticas sensíveis e protagonistas femininas fortes. O que lhe atrai nesse tipo de narrativa?
Como escritora, comecei produzindo romances. Mas, a certa altura, pediram-me para fazer uma reportagem sobre uma mulher que foi raptada na Holanda. Foi uma grande história nos anos 1980. Depois disso, me pediram para escrever um livro sobre uma família que sobreviveu à guerra das Índias Orientais Holandesas, no Pacífico.
Com o tempo, concluí que era melhor escrever romances sobre histórias que não devem ser esquecidas em vez de escrever pura ficção. Há tantas histórias por aí que deveriam ser contadas. E foi isso que eu fiz. Levando em consideração os últimos anos, acho que fica cada vez mais clara a necessidade de preservar memórias do Holocausto. Sabe, se não aprendermos com o passado, que futuro teremos?
Por que você acha que uma história tão importante quanto essa recebeu tão pouca atenção do público após a guerra e está sendo retomada só agora?
Acho que uma razão para isso foi que todas essas mulheres, essas pessoas envolvidas no resgate e que sobreviveram, se sentiram muito culpadas exatamente por terem sobrevivido e outros não. Elas perderam muitas noites de sono pensando não nas crianças que elas tinham salvado, mas naquelas que elas não puderam ajudar.
Betty, particularmente, conviveu com essa culpa por quase toda a vida até que, aos 80 anos de idade, ela estava na festa de noivado da neta e conheceu o pai do noivo, um homem de meia-idade que contou que havia sido salvo por conta dessa operação. Talvez a própria Betty possa ter sido a responsável por tê-lo salvado. Foi então que ela decidiu começar a falar sobre isso. “Agora eu sei porque Deus me manteve viva”, ela disse.
O que você espera que as pessoas aprendam com a história de Betty?
Histórias inspiradoras como a dela precisam ser contadas, porque as pessoas sempre pensam: “Bem, o que posso fazer? É um problema grande demais para eu solucionar.” Mas você sempre tem a opção de fazer a coisa certa. É preciso coragem, claro, mas você sempre tem uma escolha.
Fonte: Revista Galileu
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