Três décadas após a execução de 111 detentos na maior casa de detenção da América Latina, muitos dos responsáveis pelas mortes seguem impunes. Relembre o que aconteceu
Em 1992, a Casa de Detenção de São Paulo (ou “Carandiru”, como era popularmente conhecida) foi palco de uma das maiores chacinas ocorridas no país. Oficialmente, os registros do Massacre do Carandiru indicam 3,5 mil tiros disparados, que causaram a morte de 111 pessoas e feriram outras 110. Mas, até hoje, não se sabe exatamente o que aconteceu naquele fatídico dia 2 de outubro.
O caso de violência extrema repercutiu internacionalmente e fez com que as discussões a respeito dos problemas do sistema prisional brasileiro chegassem a grande parte da população. Em decorrência do massacre, o estado paulista aumentou o número de cárceres, a fim de reduzir a superlotação.
Segundo relatório do Conselho Nacional do Ministério Público, entre o final da década de 1990 e 2009, o número de unidades prisionais em São Paulo passou de 64 para 147. Em 2019, o estado já somava 180 casas de detenção espalhadas pelo seu território, uma quantidade quase três vezes maior do que 20 anos antes.
Pátio da Casa de Detenção de São Paulo e três dos seus pavilhões na década de 1970 — Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo
Além das investigações dos policiais envolvidos, o Estado brasileiro foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). As ações diante da chacina, porém, foram pouco efetivas. Depois de três décadas, muitos dos responsáveis pelo ataque seguem impunes; as vítimas e seus familiares, sem amparo do Estado; e a memória do evento, apagada.
O complexo penitenciário localizado no bairro Carandiru, na Zona Norte da capital paulista, cresceu desde a década de 1920, quando foi aberta a Penitenciária do Estado. A Casa de Detenção chegou a ser considerada a maior de toda a América Latina.
A região, que até então era afastada, foi aglutinada pelo crescimento do centro urbano. Conectado pelo metrô e cercado por casas e comércio, o presídio passou a receber mais detentos do que era planejado. O registro do Espaço Memória Carandiru indica que, na época do massacre, eram sete pavilhões ocupados por cerca de 7,2 mil pessoas — 2,7 mil delas só no Pavilhão 9, onde ocorreu a chacina.
Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre do Carandiru e membro do Espaço Memória, descreve o dia a dia no presídio como “tenso”. Segundo ele, o Pavilhão 9 recebia todos os réus primários que chegavam à Casa São Paulo, tanto os que aguardavam julgamento quanto quem já cumpria sentença. “Além da superlotação das celas, a convivência de muitos desafetos — membros de gangues rivais — fazia com que houvesse muitos conflitos”, relata.
Desencontro nos relatos
Foi a partir de uma dessas brigas entre detentos que se deu a chacina. “Por volta das 10h, o ‘Barba’ [Antonio Luís do Nascimento] e o ‘Coelho’ [Luís Tavares de Azevedo] começaram a brigar. Rapidamente, os funcionários pararam a disputa e levaram um deles para o Pavilhão 4, na enfermaria, e o outro para o 6, onde tinha o castigo. Nisso, os agentes quiseram trancar todos os detentos em suas celas antes do final do horário em que a circulação era permitida, às 16h. Nós não aceitamos”, lembra Monteiro.
Celas do Carandiru nos anos finais de funcionamento da casa de detenção — Foto: Andreas Heiniger/Espaço Memória Carandiru
Com a recusa, os aprisionados voltaram a ocupar os espaços do Pavilhão e os funcionários de segurança saíram do prédio. A partir desse ponto, a narrativa das vítimas difere daquela contada pelos policiais.
Para a cientista social Adriana Taets Silva, que se debruçou sobre o Massacre do Carandiru em seu doutorado em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), o desencontro de narrativas é reflexo da posição e do tempo dos depoimentos. “Enquanto a polícia produziu narrativas, documentos e processos policiais tão logo o massacre aconteceu, os sobreviventes levaram anos para dar início à produção das memórias do evento”.
Foi somente a partir dos anos 2000 que algumas obras embasadas nos testemunhos de sobreviventes começaram a ser produzidas, quase uma década depois do evento. “As vítimas de uma violência brutal, de um evento extremo, precisam de tempo para organizar a experiência, para construir narrativas e produzir memória. Aqueles, por sua vez, que perpetraram a violência, talvez não precisem de tempo para dizer o que aconteceu”, explica Silva.
Nos depoimentos aos tribunais de Justiça, os militares relataram que a rebelião tomou grande proporção, com construção de barricadas, queima de documentos e destruição das celas e assassinato de detentos por gangues inimigas. Tudo isso enquanto a direção do presídio tentava uma negociação, “sem sucesso”, conforme descreveu um agente penitenciário ouvido pelo UOL.
População reunida em frente ao Carandiru enquanto ocorria o Massacre — Foto: Agência O Globo
Desse suposto cenário, teria surgido a ordem de invasão do Pavilhão 9 pelo 1° Batalhão de Choque (ROTA). Os responsáveis alegam que o comando era para reagirem “ao mesmo nível” dos prisioneiros. Em documentos também apurados pelo UOL, Ubiratan Guimarães, responsável pela invasão policial no Carandiru, aponta que 330 policiais participaram da ação.
Monteiro nega e questiona essa versão. “Não tínhamos nenhum refém, então, como poderia estar ocorrendo qualquer tipo de negociação com a polícia? Por que tacar fogo nas celas onde ficavam os nossos pertences? Os registros nem ao menos ficavam no Pavilhão 9, como os detentos os teriam incendiado?”.
Quando a Polícia Militar chegou ao Carandiru, os encarcerados acreditavam que seria realizada apenas uma blitz, o que não era incomum. Foi então que eles avistaram pelas janelas um helicóptero e o “Esquadrão da Morte”, como era chamado um grupo da Polícia Militar acusado de perseguir e conduzir execuções por fora das ações oficiais. Segundo Maurício, nesse momento, a maioria dos presos voltou a suas celas para aguardar os funcionários, que subiriam para trancá-las, mas foram recebidos com tiros pelos policiais.
“Eu só conseguia ouvir o barulho de gritos e das armas. A princípio, achávamos que a ROTA estava atirando para cima ou quebrando braços e pernas, mas depois vimos que estava ocorrendo uma execução. Eles atiravam para matar mesmo”, recorda. “Um deles chegou a colocar o revólver na minha cabeça. Ele só não atirou porque um tenente apareceu e ordenou que a execução não fosse feita dentro da minha cela.”
Toda a ação durou entre 15 e 20 minutos. Ao final, os corredores que ligavam o Pavilhão 9 foram transformados em rios vermelhos. A água de tubos do encanamento estourados pelos tiros misturou-se ao sangue dos detentos atingidos. As vítimas estavam espalhadas pelo chão, algumas gravemente feridas, outras já sem vida.
Apesar dos dados oficiais de 111 detentos assassinados, há outros relatos de presos que simplesmente desapareceram depois do Massacre no Carandiru. Eram pessoas sem família próxima ou sem ninguém que, naquele momento, pudesse reclamar a morte.
Quem foram os responsáveis?
Na noite daquela quinta-feira, o então diretor da Casa de Detenção, José Ismael Pedrosa, afirmou à imprensa que a situação estava sob controle e foram indicadas apenas oito mortes. No dia seguinte, a Secretaria de Segurança Pública confirmou a execução de 111 detentos.
“Sexta-feira era dia de faxina para preparar o dia de visitas no sábado. Nem mesmo a ocorrência do massacre no dia anterior impediu a limpeza. Fomos ordenados a descaracterizar as cenas do crime, mover os corpos de lugar, jogar fora as cápsulas de bala e retirar o sangue”, destaca Monteiro. “Muitas famílias descobriram apenas durante a visita que seus entes estavam mortos”.
Foi justamente a falta de provas que dificultou as investigações do caso. A responsabilidade pela ação policial só começou a ser julgada quase dez anos depois, em 2001. Ubiratan Guimarães, o coronel mandante da invasão, foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 prisioneiros do complexo penitenciário. Sua defesa, porém, recorreu da sentença e ela foi revertida, sendo anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2006. Naquele mesmo ano, antes que qualquer outra medida contra o policial pudesse ser tomada, ele foi encontrado morto.
Outros cinco julgamentos ocorreram entre 2013 e 2014. Por ser um processo que envolvia muitas vítimas e réus, o juízo foi desmembrado em quatro partes. Ao final, 73 policiais foram condenados a penas que variavam de 48 a 624 anos de prisão. A defesa dos policiais, porém, decidiu recorrer. A alegação era de que não seria possível individualizar a conduta dos oficiais.
Muitas pessoas descobriram que seus familiares foram mortos depois de dias do Massacre, quando foram fazer a visita no presídio — Foto: Agência O Globo
Em 2016, desembargadores do Tribunal do Júri decidiram anular os julgamentos anteriores, defendendo que os policiais agiram em “legítima defesa”. Mais uma vez, a sentença sofreu uma recorrência e, anos depois, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu manter a condenação dos militares.
Apesar disso, segue no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 2821, de 2021, que propõe a concessão de anistia aos agentes de segurança pública processados ou punidos por condutas decorrentes da ação na Casa de Detenção de São Paulo durante o Massacre do Carandiru. De autoria do deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), o projeto está parado desde 2022 e deve ser analisado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, que ainda aguarda um relator.
Sobre a denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o relatório do caso (nº 34, de 2000) aponta que “a ação da polícia foi efetuada com absoluto desprezo pela vida dos detentos, demonstrando-se uma atitude retaliativa e punitiva”. Na visão do órgão, o Estado brasileiro falhou com seus cidadãos.
A entidade recomendou que se adotassem medidas de indenização e amparo às vítimas e suas famílias. Além disso, apontou a necessidade de desenvolver políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção, além de estabelecer programas de reabilitação e reinserção social.
Direitos dos encarcerados
Com o holofote internacional lançado sobre o sistema prisional, Taets Silva defende que foi possível identificar diversas consequências políticas e sociais no Brasil após o evento. Para ela, o massacre permitiu que as questões que dizem respeito ao cárcere alcançassem amplamente a sociedade pela primeira vez.
No site do Espaço Memória é possível encontrar um acervo de imagens e objetos dos dias finais da Casa de Detenção São Paulo — Foto: João Wainer/Espaço Memória Carandiru
“É como se esse evento chamasse a atenção para as condições carcerárias, para a violência contra essa população, para a falta de tratamento humano dentro do cárcere”, descreve a cientista social. “Eu costumo dizer que o Massacre do Carandiru abriu as portas do cárcere para que a gente espiasse o que acontece lá dentro. Foi depois dele que começamos a desenvolver, de forma mais sistemática, coletivos em prol dos direitos humanos da população prisional”.
No início, esses coletivos, formados a partir da parceria entre a sociedade civil e o sistema de justiça, priorizaram o entendimento e a luta pelos direitos humanos dos sobreviventes do massacre. Mas, aos poucos, passaram a atuar como um movimento que compreende todas as pessoas encarceradas.
Complexo do Carandiru em seus últimos anos de funcionamento — Foto: Espaço Memória Carandiru
“Se, por um lado, podemos falar que o Massacre do Carandiru extrapolou o próprio Carandiru, é possível também pensar em consequências mais práticas sobre a mudança que se deu, ao longo dos anos seguintes, nas políticas carcerárias brasileiras. Houve uma interiorização dos presídios, de forma que diversas novas unidades prisionais foram criadas pelos estados com capacidade reduzida, mais bem equipadas e com maior controle da população prisional”, pondera Taets Silva.
Por outro lado, há quem diga que o massacre foi o pontapé para a formação das facções prisionais, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo. “A princípio, esses coletivos buscavam proteger os detentos dos desmandos da administração prisional, prometendo que jamais ocorreria um massacre como o do Carandiru outra vez”, explica a doutora em antropologia.
Preservação da memória
No lugar onde esteve a Casa de Detenção de São Paulo, hoje podem ser encontrados o Parque da Juventude, a Biblioteca de São Paulo e duas instituições de ensino, a ETEC das Artes e a ETEC Parque da Juventude. Depois do Massacre do Carandiru, o complexo penitenciário continuou funcionando até 2002, quando foi desativado e se iniciaram os processos de demolição e implosão parciais dos pavilhões.
O parque foi construído em 2003, e as escolas foram inauguradas em 2007. Segundo Nádia Lima, educadora no Espaço Memória Carandiru, “a proposta era revitalizar o ambiente e devolver para a sociedade tudo aquilo que foi tirado com a existência do presídio”.
Ela destaca, porém, que o projeto foi alvo de diversas críticas. “Afinal, quem usufrui desses espaços? Quem estuda nas ETECs? São os ex-detentos ou seus filhos?”, indaga Lima. “A memória do Carandiru e do massacre, por vezes, é jogada para debaixo do tapete.”
Diversas obras retratam a história do Carandiru. Alguns exemplos são a trilogia escrita por Drauzio Varella, Estação Carandiru, Prisioneiras e Carcereiros (Companhia das Letras, 2017); o filme Carandiru (2003), dirigido por Héctor Babenco; o livro Sobrevivente André Du Rap (Hedra, 2002), de André Du Rap e Bruno Zeni; o livro Pavilhão 9: Paixão e Morte no Carandiru (Geração Editorial, 2001), produzido por Osmani Ramos; e a música Diário de um detento, lançada em 1997 pelos Racionais.
Iniciativas que buscam promover debates junto ao público geral sobre o massacre, bem como sobre os problemas vividos pelas pessoas encarceradas, enfrentam dificuldades para se manter na ativa. O Espaço Memória Carandiru é um deles. Criado junto com a ETEC Parque da Juventude, no Pavilhão 4, o Espaço reúne um acervo de imagens, vídeos e objetos coletados nos últimos anos de funcionamento da Casa de Detenção. Além disso, faz um trabalho de acolhimento dos sobreviventes do cárcere, criando oportunidades de diálogo.
“O Massacre do Carandiru não foi o único evento de violência no sistema prisional no Brasil. Até hoje, essas pessoas estão submetidas às desigualdades sociais e de gênero, ao racismo estrutural e à falta de alimentos ou atendimento médico adequado. A ROTA não entra mais atirando porque não pode, mas o Estado tem outras formas de massacrar a população encarcerada”, relata Helen Baum, pós-graduada em direito e educadora do Espaço Memória.
Segundo a equipe por trás do projeto, o esquecimento do Massacre do Carandiru e os tabus acerca da população encarcerada são tão grandes que o Espaço Memória só está funcionando graças ao Programa de Ação Cultural (ProAC). O edital vigente vai até outubro de 2023 e os responsáveis afirmam que não conseguem patrocínio ou recursos para mantê-lo aberto depois disso.
Onde outrora estava o Complexo Carandiru, hoje pode ser encontrado o Parque da Juventude — Foto: Governo do Estado de São Paulo
“Nossa luta é conscientizar as pessoas de que a maioria daqueles que estão dentro do sistema prisional não são monstros. Se a gente voltar para a sociedade e ter a chance de recuperar o nosso espaço, por meio do acolhimento e de capacitações, voltamos a ter a nossa vida”, conclui Baum.
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