Lisboa, 1502. Com a descoberta de um caminho marítimo para as Índias e de uma terra com proporções continentais do outro lado do Atlântico, a capital do reino de Portugal tornara-se um ponto de convergência para espiões de toda a Europa.
A cada viagem, os navegantes portugueses entregavam suas anotações a cartógrafos do rei, que consolidavam toda a informação sobre a forma e os caminhos do mundo em mapas cada vez mais completos. Eles eram guardados a 7 chaves em locais como a Casa da Mina e das Índias.
A pena de morte para cartógrafos que contrabandeassem mapas não impediu, porém, que o italiano Alberto Cantino conseguisse uma cópia do mapa mais completo que havia do mundo daquela época, uma “carta náutica para as ilhas recentemente encontradas na região das Índias”. O espião contratou um personagem misterioso, que teria levado 10 meses para reproduzi-lo, e remeteu a obra ao duque de Ferrara, na Itália.
O Planisfério de Cantino /Crédito: Wikimedia Commons
A cópia entrou para a história como o Planisfério de Cantino e serviu de referência para outros mapas europeus do século 16. Com 218 x 102 cm, revelava um mundo nunca visto: grandes partes da Ásia e as terras supostamente descobertas por Colombo e Cabral na América. Misteriosamente, a carta também mostra detalhes do litoral norte brasileiro, que até 1502 não fora visitado oficialmente. O que sugere que o mapa foi elaborado com a ajuda de outros navegantes, que teriam chegado ao Brasil antes de Cabral.
Para entender como isso aconteceu, precisamos voltar um pouco mais no tempo, para o início do século 15. Nessa época, os europeus só sabiam navegar em algumas regiões, como o mar Mediterrâneo e as bordas do continente. Além daí, reinava o medo. “Havia desde sempre uma crença em monstros marinhos. Eles também acreditavam que havia zonas do mar em que não se pode navegar porque a água fervia ou porque os navios encalhavam”, conta Francisco Domingues, historiador da Universidade de Lisboa, especialista em náutica da Era dos Descobrimentos.
Até os mapas tinham coisas imaginárias, como uma misteriosa “Hy-Brazil”. Também havia, é claro, o medo do fim do mundo, que poucos julgavam ser redondo. Muitos navegantes que se aventuravam pelo Mar Oceano, como os portugueses chamavam o Atlântico, iam e não voltavam. Não por acaso, um dos maiores obstáculos à navegação daquela época era chamado de cabo do Medo, ou Bojador, na costa do Saara Ocidental.
Técnicas e equipamentos
Esse cabo e o medo da navegação atlântica começaram a ser vencidos na década de 1430, quando o infante dom Henrique, filho do rei dom João I, passou a incentivar o desenvolvimento da ciência náutica. Sob sua influência, os portugueses desenvolveram uma série de técnicas e de equipamentos que lhes permitiria realizar algumas façanhas. Um dos mais importantes foi a caravela, embarcação que, com duas ou três velas triangulares, podia navegar “à bolina”, ziguezagueando “contra o vento”.
Em 1434, os homens de dom Henrique já haviam superado o cabo do Medo. Com as caravelas, eles foram – e voltaram – muito mais ao sul na costa africana. Na Guiné, nome com que eles chamam toda a costa noroeste da África, fundaram a feitoria de São Jorge da Mina, onde negociavam ouro, escravos, marfim e pimenta-malagueta. No século 15, essa foi a principal fonte de riqueza de Portugal.
Réplica moderna de uma caravela / Crédito: Wikimedia Commons
Outra grande contribuição dos portugueses foi a navegação astronômica. Graças a um instrumento chamado quadrante – e mais tarde ao astrolábio – foram os primeiros a navegar longe da costa e descobriram que era possível voltar da Guiné mais depressa se contornassem os ventos contrários que sopravam na costa africana.
Metendo-se em alto-mar, encontraram e povoaram os arquipélagos de Açores e Cabo Verde. Ninguém tinha tecnologia parecida. Era como se os portugueses fossem capazes de ir à Lua enquanto navegantes de outros países só conseguissem voar do Rio a São Paulo em teco-tecos. Os únicos marinheiros capazes de missões parecidas eram os vizinhos espanhóis.
Novas técnicas de navegação e as riquezas da África já eram suficientes para atrair a cobiça de outros países. E a capacidade marítima de Portugal ganharia ainda mais importância por causa da queda de Constantinopla (1453) e a limitação do comércio com a Ásia.
Lisboa tornou-se destino de cartógrafos, astrônomos e navegadores de toda a Europa, interessados em participar da corrida para as Índias – entre eles Cristóvão Colombo, que viveu ali nas décadas de 1470 e 80. Todos os “descobrimentos do Brasil”, até o oficial, foram um efeito colateral da busca pela rota para o Oriente.
As Índias ficaram mais próximas dos portugueses em 1488, quando Bartolomeu Dias dobrou o cabo das Tormentas – e o transformou no da Boa Esperança -, no extremo sul da África. A chegada de Colombo à América, 4 anos depois, deu início a uma crise diplomática entre Portugal e Espanha, a patrocinadora de Colombo. A rusga acabaria trazendo ao Brasil navios das duas bandeiras ainda no século 15.
Briga de Tordesilhas
Quando Colombo chegou às ilhas do Caribe, disse ter certeza de estar no Oriente, a um pulo do Cipango (Japão). O problema é que as ilhas, fossem orientais ou não, pertenciam a Portugal, segundo um tratado assinado com o reino de Castela em 1479. A descoberta lançou os dois países numa espécie de guerra fria, com armadas prontas para o combate. Durante dois tensos anos de negociação, dom João 2º, o rei lusitano, insistiu em garantir a soberania sobre o Atlântico Sul, com uma margem de 370 léguas a oeste de Cabo Verde (veja na página ao lado).
Seu esforço diplomático garantiu o acerto de Tordesilhas, em 1494, que deixou os castelhanos com as tais Índias Ocidentais e uma grande suspeita: dom João sabia da existência de alguma terra no Atlântico Ocidental, para defender tão obstinadamente seu direito à região onde hoje sabemos que está o Brasil?
Colombo / Crédito: Wikimedia Commons
Não há nenhuma evidência direta de que Dom João II conhecia terras por aqui. Existem, porém, indícios de que Portugal estava explorando essas bandas desde o regresso de Bartolomeu Dias, em 1489. Um deles são registros de mantimentos, como uma encomenda de mil quintais de biscoitos (pão assado duas vezes, usado como alimento nas viagens), suficiente para abastecer 2 ou 3 caravelas por 2 anos. Outro indício vem de espiões castelhanos, que avistaram a saída de 4 caravelas da ilha da Madeira, em 1493, navegando para Oeste.
Apesar da falta de provas, vários historiadores acreditam que dom João organizou viagens de exploração pelo Atlântico, ao sul e ao Ocidente, para estudar os melhores ventos para chegar ao cabo da Boa Esperança. Só assim os navegantes portugueses teriam descoberto a “volta pelo largo”, rota que os fazia passar muito perto do nordeste brasileiro. Será que, nessas viagens, eles teriam visto praias? Não se sabe, é claro, mas no diário de bordo de Vasco da Gama, que em agosto de 1497 fez a volta pelo largo rumo às Índias, está escrito que “achamos muitas aves e, quando veio a noite, elas tiravam contra o sudoeste muito rijas, como aves que iam para terra”.
A maior evidência de que Dom João sabia ou ao menos suspeitava de terras onde fica o Brasil vem de Cristóvão Colombo. Em sua terceira viagem ao Novo Mundo, iniciada em 1498, Colombo saiu de Cabo Verde, como faziam os portugueses, e seguiu muito mais ao sul do que nas duas anteriores.
Em seu diário, escreveu que ia verificar “a intenção del rei dom João de Portugal que dizia que no austro havia terra firme e que por isso teve diferenças com os reis de Castela”. Seguindo a pista portuguesa, Colombo de fato topou pela primeira vez com um continente. Continuava achando que tinha chegado ao Cipango. Mas era só a futura Venezuela.
A essa altura, o rei de Portugal já era dom Manuel, o Venturoso. Depois de passar 3 anos adiando uma viagem conjunta de demarcação do meridiano de Tordesilhas, porque era candidato à sucessão do reino de Castela, mudou de planos quando sua esposa espanhola morreu e lhe tirou as chances de unir os reinos.
Sabendo da nova viagem de Colombo e imaginado uma disputa sobre os limites de cada reino no Novo Mundo, ele teria enviado uma pequena e secreta expedição para verificar onde, exatamente, passava a linha de Tordesilhas. Essa viagem, comandada por Duarte Pacheco Pereira, teria sido a primeira a visitar o litoral brasileiro, em 1498.
Primeiro português
O Tratado de Tordesilhas tinha alguns problemas de aplicação. Por exemplo, ele não especificava de qual ilha do arquipélago de Cabo Verde as 370 léguas seriam contadas, e não esclarecia qual era o tamanho exato da unidade de medida empregada – cada país calculava a légua de uma maneira, na época. Quando a exploração das novas terras começasse de fato, essas dúvidas certamente causariam polêmica. Logo, era importante conhecer bem a região por onde passava o tal meridiano para não negociar às cegas, quando fosse chegada a hora.
Duarte Pacheco tinha vasta experiência em navegação atlântica, determinação de latitudes e longitudes, em viagens de exploração na África e fora consultor técnico das negociações de Tordesilhas, o que fazia dele um homem extremamente preparado para a missão de Dom Manuel.
O principal indício da viagem de Duarte Pacheco é um livro que ele escreveu entre 1505 e 1508, chamado Esmeraldo de Situ Orbis, narrando seus serviços prestados ao rei. Nele, Duarte Pacheco diz que dom Manuel lhe encarregara de “descobrir a parte ocidental, passando além a grandeza do Mar Oceano, onde é achada uma tão grande terra firme”.
Pacheco teria saído da ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, em novembro de 1498 – menos de 6 meses depois de Colombo zarpar do mesmo local. Tomando o rumo sudoeste, seguiu ventos alísios que sopram diretamente para o Brasil. No mesmo mês, avistou terra, dois graus abaixo do Equador. Dali, navegou para oeste, seguindo a corrente das Guianas.
Há poucas dúvidas de que a viagem foi realmente feita e de que ele mesmo a comandou. “O livro era escrito para o rei, sobre missões a serviço do próprio rei. Duarte Pacheco não mentiria”, explica o historiador Domingues. Já as dúvidas sobre o real destino de Duarte Pacheco são maiores porque o livro nunca foi impresso, talvez por guardar segredos muito valiosos – mais precisamente uma lista com as coordenadas geográficas de todos os portos descobertos por lusitanos desde o infante dom Henrique.
E os manuscritos que restaram, encontrados apenas no século 19, não têm os mapas a que o autor se refere na obra. O texto, no entanto, descreve com minúcias a vegetação e os povos encontrados por Duarte Pacheco em sua missão.
No livro A Construção do Brasil, o historiador português Jorge Couto reúne vários indícios de que a tal “grande terra firme” que Pacheco visitou realmente é o Brasil, mais precisamente o trecho compreendido entre o litoral maranhense e o estuário do rio Amazonas.
Outros indícios da viagem de Duarte Pacheco apresentados por Couto são documentos de época e o trabalho de outros historiadores. Um dos mais importantes é o Memorial de la Mejorada, documento castelhano de cerca de 1499, que afirma categoricamente que dom Manuel violou o Tratado de Tordesilhas recém-assinado, enviando expedições que navegaram para oeste do meridiano em áreas da coroa espanhola.
Outro documento importante é o Planisfério de Cantino, do qual tratamos no começo do texto. Ele mostra, em 1502, um golfo chamado de Fremosso, no ponto onde a linha de Tordesilhas passa pelo litoral norte brasileiro. Ora, nem Cabral nem Gaspar de Lemos, que voltou de Porto Seguro para dar notícias do descobrimento em Lisboa, passaram por essa parte do litoral na viagem de 1500.
João da Nova, que em 1501 foi às Índias e fez uma escala no cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, tampouco passou por ali. O tal golfo também não apareceria em nenhum outro mapa de origem não portuguesa até 1506. Logo, ele só poderia ter sido identificado em nosso litoral por um navegador português que tenha passado por aqui antes de 1500.
Outros dois estudos do século 20, um português e um inglês, comparam mapas espanhóis e portugueses do século 16 e concluem que o desenho da região do Amazonas dependia da existência de pelo menos “uma expedição lusa por essas paragens, anterior à de Cabral”, e que algum português teria subido o rio Amazonas por cerca de 900 km. Para muitos historiadores, Duarte Pacheco foi esse cara. Se foi, por que não foi considerado o descobridor do Brasil? Por um motivo simples: praticamente todas as terras que ele visitou estavam a oeste do meridiano de Tordesilhas e, portanto, pertenciam ao reino de Castela, não ao rei de Portugal.
Embora o tratado obrigasse cada lado a informar ao outro sobre a descoberta de terras na jurisdição do vizinho, nenhum dos dois pretendia dar essa informação de graça ao inimigo. Por isso, inclusive, era importante que a viagem de Duarte Pacheco fosse mantida em segredo.
Dom Manuel não sabia, no entanto, que, dentro de muito pouco tempo, alguns súditos de Castela também passariam ali por perto – em mares e terras que pertenciam à sua coroa. E sem guardar segredo. Afinal, como se verá a seguir, os espanhóis viajavam em missão privada, não oficial.
Primeiro espanhol
Aquele ano de 1498 foi intenso. Colombo topou com um continente. Dom Manuel perdeu o direito ao trono de Castela. Duarte Pacheco, ao que tudo indica, chegou ao Brasil. E Vasco da Gama à Índia (apesar de só ter voltado no ano seguinte). Além disso, os reis católicos estavam perdendo sua paciência com seu descobridor genovês.
Como combinado antes da viagem, o navegante foi nomeado governador das Índias Ocidentais e explorou as terras descobertas com exclusividade. Só que, mesmo que aquilo fosse o Oriente – como Colombo defendeu até a morte -, ninguém achava especiarias, ouro ou prata ali.
Para apressar a exploração do Novo Mundo, os soberanos espanhóis decidiram permitir que empreendedores particulares montassem viagens ao outro lado do Atlântico. Ao saber da notícia, um navegante da cidade de Palos de la Frontera animou-se em organizar sua expedição.
Ele havia comandado a caravela Nina na primeira viagem de Colombo, enquanto seu irmão conduzira a Pinta. Juntando seus recursos e alguns empréstimos, montou uma expedição com 4 caravelas e partiu para o Novo Mundo em novembro de 1499. Seu nome era Vicente Yañez Pinzón.
“A primeira menção que se faz a Vicente é de que aos 15 anos percorria a costa catalã com uma caravela, assaltando navios com trigo, para impedir que a cidade passasse fome durante a guerra contra Portugal, entre 1475 e 1479”, afirma Julio Izquierdo, historiador da Universidade de Huelva e autor de uma biografia sobre a família Pinzón. Izquierdo explica que Palos, a 50 km de Portugal, era uma espécie de sucursal espanhola da ciência náutica lusitana.
“Os portugueses eram, ao mesmo tempo, inimigos e mestres de navegação daquele povo. Na segunda metade do século 15, era a cidade que fornecia marinheiros para o reino de Castela.” Os Pinzóns, por sua vez, eram uma das mais renomadas famílias de marinheiros da vila. Não foi por acaso, enfim, que a expedição de Colombo saiu de Palos, com os Pinzóns no comando de 2 das suas 3 naves.
A expedição zarpou de Palos no dia 19 de novembro com uma tripulação muito familiar, com dezenas de amigos e parentes – primos, sobrinhos, tios. O irmão mais velho, Martin Alonso, morrera logo depois de voltar da América, mas o mais novo, Francisco Martin, fora com Colombo na terceira viagem e comandou uma das caravelas na nova missão. As 4 caravelas fizeram uma escala em Cabo Verde e saíram de lá seguindo o vento que soprava para sudoeste – exatamente como teria feito Duarte Pacheco um ano antes.
Sem referências
A pequena esquadra de Pinzón tornou-se a primeira expedição espanhola a cruzar a linha do Equador, o que era um problema, pois, diferentemente dos portugueses, eles ainda não sabiam navegar em alto-mar no Hemisfério Sul.
Sem a Estrela Polar, eles simplesmente não tinham referências. Meio perdidos, levados pelo vento e com a ajuda de uma tempestade, eles avistaram terra e desembarcaram no Brasil em 26 de janeiro.
Pinzón e alguns tripulantes gravaram o nome dos reis de Castela em árvores e rochas e, na presença de um escrivão, tomaram posse da terra em nome dos soberanos, batizando-a como Cabo de la Consolación.
Registros da época afirmam que o local do desembarque foi o cabo que os portugueses chamariam de Santo Agostinho, que persiste com o mesmo nome, em Pernambuco, embora alguns historiadores defendam que o tal cabo fosse a Ponta de Mucuripe, em Fortaleza. Essa é uma das poucas controvérsias que existem acerca da viagem de Pinzón, pois sua existência e seus passos são muito bem registrados.
A viagem de Duarte Pacheco, como vimos, é um acontecimento não apenas possível mas também muito provável. Ainda assim, não dá para afirmar com certeza que ela aconteceu. Não é o caso da viagem de Pinzón.
Tudo o que se passou em sua expedição foi descrito em detalhes por pelo menos dois cronistas, que entrevistaram o comandante e outros tripulantes pessoalmente para publicar os textos um ano depois.
Além disso, existe um mapa feito ainda em 1500 pelo navegador espanhol Juan de la Cosa, com detalhes de todo o trecho percorrido por Pinzón.Nele, é possível ler a frase “este cabo foi descoberto por Vicente Yañez”, no ponto em que o marinheiro de Palos desembarcou. Historiadores portugueses e espanhóis concordam que ele foi, de fato, o primeiro europeu a chegar ao litoral brasileiro, 3 meses antes de Cabral
Uma passagem da viagem de Pinzón, no entanto, revela outro enigma sobre as primeiras expedições ao Brasil. Rumando para oeste, o descobridor encontrou o rio Amazonas e passou cerca de dez dias em seu curso, explorando a região. No caminho, as caravelas encontraram um grupo de indígenas.
Emboscada
Um grupo armado, dividido em 4 botes, desceu para fazer contato, oferecendo um guizo aos indígenas. Os índios, por sua vez, atraíram os espanhóis com o que os cronistas descrevem como um bastão de ouro. Na tentativa de pegar o “presente”, o grupo foi emboscado e seguiu-se uma batalha na qual morreram 8 tripulantes.
Como os homens fugiram sem pegar o tal bastão, não se sabe se era mesmo de ouro ou não. O fato é que os índios usaram a isca certa. Como sabiam do interesse desses homens vestidos e barbudos pelo ouro? Será que, antes disso, eles encontraram Duarte Pacheco? Isso jamais saberemos.
A experiência no Amazonas, que Pinzón batizou de Santa María de la Mar Dulce, teve outra consequência para a expedição. Enquanto subia e descia o rio, ela foi ultrapassada pelo grupo de Diego de Lepe.
Pois é, Cabral não foi nem o primeiro nem o segundo a chegar, comprovadamente, à costa brasileira. Lepe, primo de Pinzón, saíra da Palos 20 dias depois e empreendeu uma “viagem irmã”, chegando ao litoral brasileiro dois meses antes de Cabral.
Ao bater no cabo de Santo Agostinho, Lepe navegou algumas milhas para o sul e voltou, percorrendo em seguida a mesma trajetória de Pinzón. Sua viagem está descrita, ainda que com menos detalhes, pelos mesmos cronistas da época, que também o entrevistaram.
Logo, enquanto Pinzón foi o primeiro a percorrer o trecho do cabo de Santo Agostinho ao Amazonas, Lepe é considerado o descobridor do trecho que vai do rio Amazonas até o Essequibo, atual fronteira da Venezuela com a Guiana.
Os dois viajantes ainda seguiriam a costa sul-americana até o golfo de Pária, antes de subir ao Caribe e regressar à Europa. Essas regiões, no entanto, já haviam sido navegadas e mapeadas por Colombo e por Juan de la Cosa – aquele mesmo autor do mapa que atesta a viagem de Pinzón.
O curioso é que, diferentemente do que aconteceu com Duarte Pacheco, boa parte do litoral que os dois percorreram estava na zona de soberania portuguesa de acordo com o Tratado de Tordesilhas.
O papel de Cabral
Pedro Álvares Cabral saiu de Portugal com destino a Índia em março de 1500. Não há dúvida de que chegou, tomou posse, rezou missa, fincou cruz e deu início ao processo que tornou o Brasil uma colônia portuguesa – e por isso mesmo ficou com a fama de descobridor.
A controvérsia sobre sua viagem é se teria chegado por acidente ou intenção, mas até isso não é mais mistério. Sabe-se que, no local em que deveria tomar o rumo leste, os ventos sopravam para esse mesmo lado. Logo, é improvável que tenha vindo para oeste por acidente.
O que se discute é se veio por ordem do rei ou dos conselheiros reais, nobres e comerciantes que discordavam da viagem para a Índia. “Os mercadores privados e a maioria do conselho do rei preferiam a expansão no Atlântico, onde não era necessário entrar em conflito com os muçulmanos e os monopólios reais eram restritos a alguns portos e produtos”, explica o historiador Thomaz. “Para o rei, o Brasil constituiria somente uma escala para a Índia, mas para os mercadores privados era a perspectiva de um novo mundo a explorar.” Portanto, é bem possível que o fidalgo Cabral tenha resolvido contrariar o rei.
A hipótese poderia explicar o fato de ter sido “esquecido” pelo monarca, que nunca mais o escolheu para qualquer missão em mar ou em terra. Cabral morreu sem glória, sem retrato ou busto de descobridor do Brasil. Os outros descobridores não tiveram melhor sorte. Duarte Pacheco ainda foi tratado com honra por dom Manuel, que lhe deu o comando de uma armada para as Índias e o cargo de governador de São Jorge da Mina – posições muito lucrativas.
Com a ascensão de dom João 3º, porém, ele seria perseguido e preso sob a acusação de desvio de ouro. Pinzón faria outra viagem ao Novo Mundo, na qual teria sido o primeiro europeu a encontrar os astecas, no México, mas morreu endividado, em 1514. Da vida de Lepe sabe-se menos ainda. Morreu em Portugal em 1515 e não se tem notícia nem de onde foi enterrado.
Dificilmente saberemos se outras pessoas não teriam chegado ao litoral brasileiro antes desses homens. A história dessas viagens foi preservada em poucos documentos. Quantas outras, de menor importância ou maior segredo, não teriam sido feitas? Quando Martim Afonso de Souza veio para o sul do Brasil, em 1530, encontrou por aqui certo Bacharel de Cananeia, degredado europeu apresentado em diversas crônicas do século 16.
Os registros da viagem de Afonso dizem que o Bacharel estava no Brasil havia 30 anos. A maioria dos historiadores defende que ele fora deixado aqui por Gonçalo Coelho, em 1502, mas alguns dizem que isso teria acontecido em 1499, numa suposta expedição de Bartolomeu Dias ao Brasil – de qualquer forma, ele estava justamente onde passava o meridiano de Tordesilhas.
Não há evidências concretas de qualquer outra viagem no Atlântico Sul entre 1488 e 1498. Apesar da falta de provas, provavelmente houve, sim, outras expedições à região. Vasco da Gama percorreu no caminho para a Índia a mesma rota que os velejadores fazem até hoje entre a Europa e o sul da África.
Gama teria acertado o melhor caminho, de primeira, por pura sorte? Ou teria feito isso depois de um longo e meticuloso período de viagens de exploração? Domingues arremata: “Essa é uma pergunta que se faz há mais de 100 anos”
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