Entenda o contexto que levou ao motim popular em novembro de 1904, além das consequências do episódio
Esgoto a céu aberto, acúmulo de lixo, cortiços lotados, falta de água potável. A saúde pública no Rio de Janeiro no início do século 20 era caótica: com condições sanitárias precárias, a capital da república enfrentava epidemias frequentes. Até que, em 1903, um renomado sanitarista chegou à direção-geral da Saúde Pública.
Oswaldo Cruz, médico paulista formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, havia estudado no Instituto Pasteur na França, controlado um surto de peste bubônica em Santos e fundado o Instituto Soroterápico Federal em Manguinhos, no Rio de Janeiro. E trouxe uma série de medidas drásticas para enfrentar as crises sanitárias. Entre elas, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola.
A população não gostou, e organizou uma rebelião que ficou conhecida como a Revolta da Vacina. O motim revelou as tensões entre as necessidades de saúde coletiva e os direitos individuais, assim como as disparidades sociais e a desconfiança nas autoridades governamentais. Mas acabou com uma nova e intensa epidemia de varíola, que finalmente convenceu a população a se vacinar.
Revolta da Vacina: contexto histórico
Antes de avançar para o final, vamos voltar um pouco no tempo. O Brasil vivia um período agitado: em 1888, havia sido aprovada a abolição da escravatura. No ano seguinte, o golpe militar derrubou o imperador e proclamou a República. Era, portanto, um momento de transição política e cultural.
Agora alçado ao posto de capital federal, o Rio de Janeiro passava por um crescimento acelerado, com o aumento da população, a urbanização e a migração da população do campo para a cidade. O resultado foram problemas de saneamento básico, falta de infraestrutura e condições precárias de vida. Tudo isso criou um ambiente propício para a disseminação de doenças infecciosas como varíola, febre amarela, tuberculose e disenteria.
O médico e sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz (1872-1917) — Foto: Wikimedia Commons
Sem ações efetivas de controle de doenças, elas acabavam se propagando e se tornando epidemias, especialmente nas áreas mais pobres e densamente povoadas da cidade. As condições insalubres, a falta de acesso à água potável e o acúmulo de lixo favoreciam a proliferação de vetores e microrganismos patogênicos.
Para conter a disseminação das doenças, algumas medidas começaram a ser implementadas, como a criação do Instituto Soroterápico Federal (posteriormente denominado Instituto Oswaldo Cruz) e a Diretoria Geral de Saúde Pública.
Além disso, foram criados serviços de vacinação e postos de saúde com o objetivo de imunizar a população. Embora fosse obrigatória desde 1837 para crianças, por ordem do Império, e desde 1946 para adultos, a vacinação contra a varíola não era cumprida por causa da baixa disponibilidade dos estoques.
Em 1884, o imunizante alcançou escala comercial. Naquele período, porém, era motivo de desconfiança da população. Entre as justificativas da população para não se vacinar estavam o fato de ser uma imposição do o fato de ser uma imposição do Estado às liberdades individuais e os boatos, como o que dizia que quem tomasse a injeção ficaria com feições bovinas.
Outra medida adotada foram as obras de remodelação urbana do Rio de Janeiro. O plano incluía reformas na infraestrutura de saneamento básico, como a melhoria do abastecimento de água e o tratamento de esgotos. Sob o comando do prefeito Pereira Passos, essas obras se traduziram em “higienização”, com a remoção dos cortiços da região central. Como consequência, as populações mais pobres foram para as áreas periféricas, dando início ao processo de favelização da cidade.
Essas ações foram criando um sentimento de revolta entre os cidadãos. Até que, em 1904, a aprovação de uma lei que estabelecia punições para quem não se vacinasse foi o estopim para um motim generalizado no Rio de Janeiro — episódio que ficou conhecido como a Revolta da Vacina.
Criação e implementação da vacina obrigatória
A lei nº 1.261, aprovada em 31 de outubro de 1904, teve como mentor o novo diretor-geral de Saúde Pública do país, Oswaldo Cruz. Sua experiência prévia o fazia reconhecer a importância da imunização em massa para conter a disseminação da doença. Mas Oswaldo Cruz não se contentou apenas com uma nova lei, e propôs medidas drásticas para alcançar a meta de imunização, estabelecendo equipes que percorriam as ruas da cidade para vacinar as pessoas.
A resistência da população foi impulsionada por diferentes fatores. Primeiro, a lei tornava obrigatória a apresentação de comprovante de vacinação para realização de matrículas nas escolas, obtenção de empregos, autorizações para viagens e emissão de certidões de casamento.
“Aqui jaz a vaccina obrigatória” – Charge de outubro de 1904, em meio às conturbações que levaram à Revolta da Vacina. A autoria da ilustração é de difícil identificação — Foto: Domínio público
Além disso, muitos brasileiros, especialmente os das classes mais baixas, tinham pouco acesso à informação adequada sobre a importância e os benefícios da vacinação. Isso levou a um temor generalizado e à propagação de boatos e teorias da conspiração, alegando que a vacina causava efeitos colaterais graves e até mesmo a morte.
A forma agressiva de implementação das medidas, com equipes invadindo casas e imunizando as pessoas à força, exacerbou ainda mais os ânimos já aflorados. A população se sentia desrespeitada e violada em seus direitos individuais.
O resultado foi uma rebelião generalizada: sem uma liderança formal, o povo tomou as ruas no dia 10 de novembro de 1904, em protesto contra as medidas. Durante cinco dias, postos de vacinação foram depredados, barricadas foram levantadas e autoridades, atacadas.
Desdobramentos e consequências da Revolta da Vacina
O governo reagiu com força para reprimir o levante popular. As autoridades mobilizaram a polícia e o exército para controlar os distúrbios e restabelecer a ordem. O saldo no dia 16 de novembro foi de 945 prisões, 110 pessoas feridas e 30 mortas, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde.
Depois da Revolta da Vacina, o governo brasileiro buscou adotar medidas para acalmar a insatisfação popular e evitar futuros levantes. A primeira delas foi a revogação da lei da vacinação obrigatória, já no dia 16 de novembro. Em vez da imposição, a estratégia passou a ser a comunicação. O próprio Oswaldo Cruz começou a escrever artigos em jornais destacando os aspectos científicos e efeitos positivos da vacina contra a varíola.
Não foi o suficiente. Além de a população em sua maioria ser analfabeta ou semianalfabeta, os críticos do sanitarista o ironizavam em charges de jornal e marchinhas de carnaval.
O resultado da insistência da população em não se vacinar foi uma nova e intensa epidemia de varíola em 1908. Naquele ano, segundo informações da Casa de Oswaldo Cruz, o Rio de Janeiro teve mais de 6,5 mil casos da doença. A gravidade do surto foi suficiente para, enfim, convencer a população a se imunizar voluntariamente.
Além da mudança na estratégia de comunicação, a Revolta da Vacina fez o governo promover reformas efetivas na área de saúde pública. A fim de melhorar as condições sanitárias da população, houve investimento em infraestrutura de saneamento básico e abastecimento de água e esgoto.
Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, nos anos 1910 — Foto: Domínio público
Mas mais importante que seus efeitos e desdobramentos imediatos, a Revolta da Vacina trouxe legados duradouros para o Brasil. O primeiro deles foi o reconhecimento de Oswaldo Cruz como um dos “pais” do sanitarismo público brasileiro. Apesar da controvérsia e da resistência enfrentada durante novembro de 1904, ele é tido como o principal responsável pela modernização do sistema de saúde brasileiro e estruturou o que hoje é uma das principais instituições de pesquisa do país, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
E, principalmente, a Revolta da Vacina teve reflexos profundos na saúde pública atual no Brasil. Os aprendizados obtidos com o episódio influenciaram as políticas de saúde pública. Hoje, o país é tido como referência em campanhas de vacinação e cobertura vacinal para doenças como poliomielite, sarampo e influenza — ainda que nos últimos anos venha enfrentando quedas generalizadas nos índices de vacinação e arrisca ver o ressurgimento de doenças consideradas erradicadas.
Mapa mental
Contexto
Proclamação da República
Modernização do Rio de Janeiro
Epidemias de varíola
Criação da Diretoria de Saúde Pública
Oswaldo Cruz
Causas
Insatisfação popular
Boatos e “fake news”
Lei da obrigatoriedade
Vacinação forçada
Desdobramentos
Revogação da obrigatoriedade
Campanhas de conscientização
Nova epidemia em 1908
Vacinação voluntária
Legados
Investimentos em infraestrutura de saneamento básico
Modernização da saúde pública
Oswaldo Cruz, o pai do sanitarismo
Brasil referência em imunização
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