Revelada origem de mutações que causam doenças raras em famílias consanguíneas
10 de janeiro de 2019

Pesquisa identifica ancestralidade de doenças raras que afetam filhos de famílias consanguíneas no Nordeste

As quatro doenças raras pesquisadas foram a síndrome Spoan, que causa atrofia do sistema nervoso, seguido de paralisia; a síndrome Santos, que causa anomalia de membros; e MED25 e IMPA1, que levam à deficiência intelectual – Arte sobre foto – Nasa’s Marshall Space/Flickr-CC

Famílias consanguíneas são aquelas em que pais geneticamente relacionados, como primos de primeiro grau, geram descendentes. Entre as doenças raras que afetam pessoas dessas famílias no Nordeste estão a síndrome Spoan, uma doença neurodegenerativa; a síndrome Santos, que causa anomalia de membros; e a MED25 e a IMPA1, que levam à deficiência intelectual. Uma pesquisa buscou identificar quando e onde surgiram as mutações que causam essas doenças de herança recessiva, revelando que têm origem ancestral na Europa e na América.

O estudo gerou o artigo Origin and age of the causative mutations in KLC2, IMPA2, MED25 and WNT7A unraveled thourgh Brazilian admixed populations, publicado  na Scientific Reports, revista do grupo Nature. O trabalho de prospecção foi feito em parceria do Centro de Estudos do Genoma Humano, do Instituto de Biociências (IB) da USP com a Universidade Estadual da Paraíba.

Segundo Allysson Allan de Farias, o primeiro autor do estudo, o trabalho de campo começou em 2014 e foi finalizado em 2018. Envolveu 18 pessoas afetadas por doenças genéticas raras de herança autossômica recessiva (entenda o que são na imagem abaixo). A escolha do Nordeste se deu pela elevada prevalência de pessoas com doenças genéticas raras que poderia estar associada aos altos índices de casamentos consanguíneos, relata o pesquisador. Cerca de 25% dos casais consanguíneos apresentam um ou mais filhos com alguma deficiência. Dentre estas, foram descritas as quatro doenças de herança autossômica recessiva: a síndrome Spoan, a síndrome Santos, MED25 e IMPA1.

Os participantes da pesquisa eram moradores da zona rural dos municípios de Catolé do Rocha e Brejo dos Santos, no Estado da Paraíba; Serrinha dos Pintos, Martins, São Miguel, Doutor Severiano, Pau dos Ferros, Encanto, Coronel João Pessoa e Riacho de Santana, no Estado do Rio Grande do Norte.

Além de suspeitar que as doenças genéticas estivessem correlacionadas aos casamentos consanguíneos, os pesquisadores queriam ir mais além: precisavam saber a origem e a idade dessas doenças, “o que talvez explicaria a dispersão das mutações genéticas causadores das síndromes raras, como também identificar as populações que pudessem estar em risco no Brasil e no mundo”, explica Farias.

Até 2005, não havia um diagnóstico fechado sobre a síndrome Spoan. Os pacientes afetados, que sofriam de atrofia do sistema nervoso seguido de paralisia, peregrinavam de médico em médico e permaneciam sem saber o que tinham, dependendo totalmente dos cuidados da família.

Os pesquisadores tinham a informação de que além dos casos ocorridos no Brasil com a síndrome Spoan, dois irmãos tinham sido encontrados no Egito com a mesma mutação. A partir desta realidade, foi dado início ao estudo de ancestralidade local: foi coletado sangue das pessoas com tais deficiências e extraído DNA de estudo genético nos laboratórios do IB. “A investigação se deu na origem do fragmento cromossômico que contém a mutação causadora de cada doença”, explica Farias.

Para fazer as comparações, também foram utilizadas informações genéticas de bancos de dados representando as populações europeias, africanas e nativo-americanas, considerando que o Brasil é altamente miscigenado.

O primeiro achado importante da pesquisa foi a descoberta da ancestralidade nativo-americana (índios que habitaram o Brasil há 10 mil anos) para a doença que causa anomalia de membros (a síndrome Santos) e ancestralidade europeia para as três outras – a síndrome Spoan, MED25 e IMPA1. Neste mesmo estudo, também foi confirmada alta taxa  de consanguinidade em famílias do Nordeste, o que era semelhante às populações do Oriente Médio.

A partir destes achados, outras perguntas surgiram: quando estas doenças surgiram? Antes ou depois do contato dos portugueses com os nativos? Os resultados para estas questões foram os seguintes: de cerca de 100 anos para ancestralidade nativo-americano, para a síndrome Santos; e cerca de 200 anos para as duas deficiências intelectuais (MED25 e IMPA1), sendo que estas últimas indicavam que poderiam ter surgido após o contato com dos portugueses com as famílias do sertão.

Allysson Allan de Farias, primeiro autor do artigo publicado na Scientific Reports – Foto: Arquivo pessoal

Para a síndrome Spoan, a dúvida era saber qual seria a ligação do Brasil com o Egito? Para definir a idade da mutação, foi feita uma estimativa pelo tamanho dos segmentos cromossômicos compartilhados entre os indivíduos afetados brasileiros e egípcios (banco de dados). Sabendo que Spoan tinha ancestralidade europeia, a idade da mutação ficou definida por volta de 485 anos, o que indicou o surgimento da doença na Península Ibérica, antes do contato dos nativos com os portugueses.

Questionado sobre a importância de se estudar a ancestralidade das doenças, Farias explica que os resultados contribuem para identificar a origem e a compreensão de como essas doenças são disseminadas nas populações brasileiras e mundial. No caso especificamente do Nordeste, os resultados da pesquisa trouxe alento. Em relação à síndrome Spoan, depois identificada, os indivíduos passaram a ser vistos de outra forma pelos profissionais de saúde e pelo governo municipal e estadual no que diz respeito ao amparo e ao bem-estar de pessoas com deficiência.

Mais informações: Allyssonallan@gmail.com com Allysson Allan de Farias

Fonte: Jornal da USP