Quando os primeiros casos de covid-19 (a doença causada pelo novo coronavírus) começaram a surgir em Nova York, no início deste mês, as autoridades anunciaram imediatamente que “detetives de doenças” estavam investigando os contatos das pessoas infectadas para tentar retardar a propagação do vírus.
Esses “detetives” são epidemiologistas especializados em rastrear doenças infecciosas, para tentar conter seu avanço. Nos Estados Unidos, onde já foram confirmados mais de 1,8 mil casos da covid-19 em 47 dos 50 Estados, com 41 mortos, há centenas deles trabalhando atualmente no combate ao coronavírus em todo o país.
Alguns são funcionários de hospitais, outros trabalham em departamentos de saúde municipais e estaduais. Há ainda uma equipe de elite treinada pelo CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) que, quando requisitada, pode ser despachada para todo o país e para o exterior para ajudar nas investigações.
É um trabalho meticuloso, que envolve fazer um detalhado rastreamento de contato, ou seja, descobrir quando e como cada paciente foi contaminado, onde esteve nas semanas anteriores e com quem manteve contato próximo – pessoas que também podem ter sido expostas ao vírus e precisam ser identificadas, alertadas e monitoradas.
“Perguntamos se o paciente é casado, se tem filhos, que escola os filhos frequentam, onde trabalha, como se descola até o trabalho”, diz à BBC News Brasil a epidemiologista Kryssie Woods, diretora médica de prevenção de infecções do hospital Mount Sinai West, em Manhattan.
“Nova York é um pouco diferente de cidades menores nos Estados Unidos, a maioria das pessoas (aqui) não dirige, usa transporte público. Por isso é importante saber como vão e voltam do trabalho”, ressalta.
Woods é uma das dezenas de profissionais médicos que atuam para investigar e conter o avanço do vírus em Nova York. O Estado de Nova York é um dos principais focos da covid-19 no país, com 421 casos confirmados.
As perguntas feitas nesse trabalho de reconstrução da cadeia de contaminação envolvem diversos aspectos da rotina do doente: se frequentam academia de ginástica, se têm algum hobby e até mesmo se mantêm casos extraconjugais.
“Você não pode achar que, só porque alguém é casado, não esteja passando tempo com outra pessoa”, salienta Woods.
Obstáculos
Esse trabalho de investigação enfrenta vários obstáculos, entre eles a memória dos pacientes, que precisam reconstruir em detalhes sua rotina nas últimas duas semanas.
“Você não sabe quem está encontrando quando vai ao mercado, ao banco. Pode haver alguém doente lá, e você talvez nunca saiba, porque não há como alguém (infectado) identificar que você estava lá no mesmo momento (e avisá-lo sobre o risco de contágio)”, alerta Woods.
No caso do transporte público, mesmo na improvável hipótese de que a pessoa infectada consiga lembrar o horário preciso e o número exato do vagão de metrô em que viajou duas semanas atrás, é impossível identificar e contactar todos os que estiveram no local no mesmo horário.
Além disso, algumas das perguntas podem deixar os pacientes incomodados, e o epidemiologista precisa estabelecer uma relação de confiança com o doente.
“É um desafio”, afirma Woods. “Mas acho que, na maior parte do tempo, em uma doença como esta, quando as pessoas percebem que pode haver impacto grave nos outros, a maioria das pessoas é genuinamente boa e quer ajudar e não vai obstruir ou mentir. Elas tentam cooperar.”
“Quanto você tem (um paciente) que não sabe os nomes ou a localização das pessoas com quem passou tempo, isso torna a investigação ainda mais complicada”, diz à BBC News Brasil o chefe do Serviço de Inteligência Epidêmica (EIS, na sigla em inglês) do CDC, Eric Pevzner.
O EIS é um programa de pós-graduação em epidemiologia aplicada que dura dois anos. Seus profissionais de saúde altamente treinados são considerados a principal unidade de elite em epidemiologia nos Estados Unidos, e atuam ao redor do mundo para identificar e combater epidemias.
“Muitas vezes, nossos detetives de doenças estão investigando situações em que pode haver comportamento ilícito envolvido, como uso de drogas. Nesse caso, as pessoas relutam em citar ou nome ou localização de outras pessoas com quem estão usando drogas, por medo de que possam criar problemas para elas”, observa Pevzner.
“Você precisa entender isso e trabalhar duro para construir um relacionamento de confiança”, ressalta.
Missões ao redor do mundo
Segundo Pevzner, dos 130 profissionais do EIS, 78 estão envolvidos no combate à pandemia do coronavírus, espalhados por todos os Estados Unidos, onde atuam a convite e em conjunto com equipes das secretarias de saúde estaduais e locais.
“Nossos detetives de doenças recebem treinamento intenso e são supervisionados por epidemiologistas muito experientes”, destaca Pevzner.
Desde que o programa foi criado, na década de 1950, seus epidemiologistas participaram do combate a surtos e epidemias ao redor do mundo, como ebola, Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês), HIV, sarampo, polio e zika, além de responderem a desastres naturais e outras ameaças à saúde pública. A atuação no exterior depende de convite das autoridades de cada país, e é feita em conjunto com especialistas locais.
Sua missão é investigar o surto, identificar cada caso e seus contatos, coletar e analisar dados e implementar medidas de controle. Esse trabalho muitas vezes é perigoso e envolve ir a campo e conduzir entrevistas em lugares inacessíveis, investigando doenças sem cura ou tratamento, algumas com alta taxa de mortalidade.
“Sempre que você está trabalhando para responder a um surto de doença infecciosa, precisa levar em conta (também) a abordagem social, ecológica. Realmente compreender todos os fatores que podem contribuir para a transmissão do patógeno”, observa Pevzner, que participou de missões como o combate à gripe suína no México, em 2009, e ao ebola na África Ocidental, em 2015.
Segundo Pevzner, isso envolve não apenas analisar relações individuais, mas também fatores comunitários e pressões econômicas que podem, por exemplo, dificultar medidas de isolamento e quarentena.
O professor de epidemiologia Joseph Eisenberg, da Universidade de Michigan, lembra que o trabalho dos detetives de doenças depende do estágio da investigação.
“(Algumas vezes) Pode ser que estejamos apenas vendo a doença, sem nem ao mesmo saber o que está causando”, diz Eisenberg à BBC News Brasil. “Nesses casos, estamos procurando tanto o agente, o patógeno, e tentando entender melhor o que é, quanto os caminhos de exposição e como (a doença) é transmitida.”
Recomendações
Pevzner salienta que a decisão sobre recomendações ao paciente e quais de seus contatos priorizar depende do patógeno específico e começa com os grupos que estão em maior risco. “Entre os que passaram mais tempo (com o doente), você vê o percentual de infectados”, diz.
A partir dessa análise, a investigação pode ser estendida para mais pessoas que interagiram com o paciente inicial, ou até mesmo para os contatos dos contatos.
Segundo Pevzner, em casos de ebola, por exemplo, se alguém provavelmente foi exposto, mas não apresenta sintomas, é colocado em quarentena e observado pelo período de tempo que a doença levaria para se manifestar. Nos casos em que a pessoa já tem sintomas, a medida não é mais a quarentena, e sim isolamento (em hospitais).
Na epidemia de coronavírus nos Estados Unidos, cada pessoa que esteve em contato com alguém infectado recebe um nível de risco, dependendo da avaliação dos epidemiologistas envolvidos. As recomendações são analisadas caso a caso e dependem do nível de contato com o paciente.
“Se uma pessoa estava em uma igreja em que alguém foi diagnosticado, mas não estava sentada perto do paciente, não estava interagindo regularmente com ele, é provável que não tenha sido contaminada. Mas se estava sentada ao lado do paciente, se conversou com ele, se jantou com ele depois, esse tipo de interação aumenta o risco”, afirma Woods.
Se a pessoa não teve contato significativo com o paciente e não apresenta sintomas, às vezes pode retomar a vida normal, com a recomendação de monitorar sua situação. Outras vezes, há a recomendação de monitorar sintomas e temperatura corporal diariamente e alertar sobre qualquer alteração. Mas cada caso é avaliado individualmente.
Problemas com testes nos EUA
Eisenberg alerta que o rastreamento de contato é eficaz no início de uma epidemia, mas chega um ponto em que não funciona mais, porque o número de infecções é muito grande e amplo, como no caso da gripe. Mas ele acredita que os Estados Unidos ainda não chegaram nesse ponto em relação ao novo coronavírus, e o rastreamento de contato é útil.
O professor da Universidade de Michigan cita entre os desafios a escassez de testes para diagnosticar rapidamente os casos suspeitos nos Estados Unidos. Durante semanas no início do surto, apenas o laboratório na sede do CDC, em Atlanta, podia aplicar testes para diagnosticar a doença. Quando o CDC finalmente começou a distribuir kits de diagnóstico para laboratórios locais e estaduais, esses kits apresentaram resultados inconclusivos.
A distribuição de novos kit levou semanas. Além disso, inicialmente havia um critério muito rígido para ser testado – somente pessoas que haviam estado em contato com alguém com diagnóstico positivo ou viajado para China, Coreia do Sul, Irã, Itália ou Japão. Todos esses problemas limitaram inicialmente o número de americanos com acesso ao teste.
Esses problemas podem ter contribuído para a propagação do vírus e geram dúvidas sobre o número exato de contaminados nos Estados Unidos. Como muitas vezes a covid-19 gera sintomas leves, é provável que muitos doentes não tenham sido testados ou colocados em quarentena, infectando assim as pessoas com quem tiveram contato.
Os especialistas ressaltam que ainda há muitas dúvidas em relação à covid-19. Pevzner diz que entre os desafios, assim como com qualquer novo patógeno, estão o fato que não se sabe muito sobre a transmissibilidade, sobre a severidade da doença, ou sobre como tratar.
“Por isso são tomadas as medidas que estamos vendo, medidas agressivas para evitar a propagação do vírus, enquanto coletamos mais informações para entender melhor como testar, como prevenir”, afirma. “É realmente um enorme desafio de saúde pública.”
Fonte: bbc
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