A infecção que causou estragos no mundo no final do século 20 teria começado a se disseminar nos anos 1930 — mas ela ainda está entre nós e é um problema de saúde pública
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um agente capaz de invadir com facilidade células animais de defesa e, a partir delas, transcrever seu próprio genoma. Ele é responsável por causar a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), que chegou a ser considerada uma pandemia no final do século 20 e, ainda hoje, é vista com preconceito e estigma.
Classificado na subfamília dos vírus Lentiviridae, o HIV é formado por moléculas de RNA e, quando exposto ao organismo humano, ataca sobretudo os linfócitos T CD4+, que produzem IFN-γ, uma das mais importantes citocinas antivirais. Integrado ao material genético do hospedeiro, o vírus apresenta um período de incubação prolongado antes de provocar sintomas da doença, a aids. Daí porque, muitas vezes, ele é diagnosticado tardiamente.
Desde o início da crise epidemiológica, cerca de 85,6 milhões de indivíduos foram infectados pelo vírus e 40,4 milhões deles morreram por decorrência da doença, segundo estimativas do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids). Há alguns anos, o diagnóstico era visto como uma sentença final, mas, graças ao avanço da ciência e das práticas médicas, o cenário que se vive hoje é outro — há espaço para a esperança e o desejo de uma vida longa.
Origem do HIV
Os cientistas ainda não têm evidências suficientes para chegar a um consenso sobre como exatamente surgiu o HIV e desde quando ele circula. O que se sabe é que ele tem origem em uma variante do vírus da imunodeficiência símia (SIV), que infecta chimpanzés e macacos-verdes nas regiões da África Central e Ocidental.
Acredita-se que a transmissão do SIV para os seres humanos possivelmente aconteceu a partir do contato com o sangue infectado desses primatas, durante caçadas ou pelo consumo de sua carne. Essa introdução no organismo humano teria estimulado a adaptação do vírus à nossa espécie, dando origem ao HIV.
Isso teria acontecido nos anos 1930; a partir daí, o vírus começou a ser disseminado pelo continente africano nas décadas seguintes. Porém, com as guerras de independência e as invasões na África entre as décadas de 1960 e 1970, o agente passou a circular em outras regiões do globo.
Em 1981, houve o primeiro registro oficial da doença gerada pelo vírus — que só um ano depois seria nomeada como aids. Na ocasião, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, relatou um quadro clínico de infecção pulmonar rara em cinco homens gays jovens, previamente saudáveis, em Los Angeles.
No Brasil, o primeiro caso da doença foi notificado em 1982. Nesse mesmo ano, os cientistas internacionais descobriram o fator de possível transmissão por contato sexual, uso de drogas e exposição e transfusão de sangue contaminado.
Inicialmente, a doença era associada somente a homens que se relacionavam sexualmente com outros homens — daí porque ela ficou conhecida como “crise de saúde dos gays”. Em 1983, porém, foram notificados casos de aids também em mulheres e crianças; logo em seguida, descobriu-se a capacidade do vírus de contaminar verticalmente recém-nascidos e fetos durante a gestação, o parto e a amamentação.
Transmissão do HIV
Segundo Claudia Velasquez, diretora do Unaids no Brasil, a transmissão comunitária e, consequentemente, a pandemia da doença foram impulsionadas por características comportamentais e sociais complexas e inter-relacionadas. “Os fatores variam nas diferentes regiões do mundo, mas, juntos, criaram um ambiente propício para a rápida disseminação do vírus em escala global”, aponta, em resposta por e-mail à reportagem.
Dentre esses fatores, estão:
- Comportamento sexual desprotegido: sexo com múltiplos parceiros sem uso de preservativo, falta de acesso a informações sobre prevenção, barreiras econômicas e pressões culturais contribuem para a propagação do HIV;
- Uso de drogas injetáveis: o compartilhamento de agulhas e seringas contaminadas influencia significativamente a disseminação do vírus;
- Migração e mobilidade: muitos trabalhadores migrantes enfrentam condições precárias de vida, o que inclui acesso à saúde. Em especial, as populações que se veem obrigadas a migrar devido a conflitos ou crises políticas ficam em situação de extrema vulnerabilidade para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs);
- Desigualdades sociais e econômicas: o HIV se espalha mais rapidamente em regiões com altos níveis de desigualdade social e pobreza, onde é mais latente a falta de acesso a cuidados de saúde, educação e informações;
- Estigma e discriminação: o estigma associado ao HIV e à aids impede que muitas pessoas busquem testes e tratamento, ou adotem medidas de prevenção.
- Barreiras de gênero: em muitas partes do mundo, a desigualdade de gênero coloca as mulheres em situações de maior risco ao HIV, por motivos como falta de controle sobre as relações sexuais ou coerção sexual; e
- Falhas nos sistemas de saúde: sistemas de saúde frágeis e má gestão dos órgãos competentes provoca escassez de recursos necessários para lidar com a crise epidemiológica.
Crise da aids
A princípio, a falta de informações sobre o HIV e a aids levou muitos países a cometerem erros na gestão da pandemia, endossando preconceitos e o estigma vivido por pessoas soropositivas. Algumas peças culturais bastante conhecidas ilustram isso: o documentário Paris is Burning (1991); o livro Depois daquela viagem (1997), de Valéria Polizzi; o filme Bohemian Rhapsody (2018), sobre a banda Queen; o documentário brasileiro Carta Para Além dos Muros (2019); e a premiada série Pose (2018-2021).
Mas, superada essa fase inicial, os pilares de prevenção, tratamento, suporte social e enfrentamento do estigma passaram a guiar o combate à crise. “Conforme o conhecimento científico aumentou e as pressões da sociedade civil e das organizações de saúde se intensificaram, as ações se tornaram mais coordenadas e abrangentes”, avalia Velasquez.
Por volta de 1985, foi finalmente disponibilizado o primeiro teste anti-HIV no Brasil. No ano seguinte, chegou por aqui o AZT, primeiro medicamento capaz de reduzir a multiplicação do vírus em organismos infectados. Mas esse tratamento era caro e só se popularizou em 1991, quando o Ministério da Saúde passou a distribuir antirretrovirais gratuitamente.
Desse momento em diante, a gravidade da doença passou a diminuir, assim como o número de infectados. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, a mortalidade das pessoas com HIV caiu em 50% em 1999, o que representou uma melhora significativa na qualidade de vida.
O próprio Unaids, criado em 1996, foi instalado para congregar e coordenar os esforços das agências das Nações Unidas a fim de dar uma resposta abrangente e sustentável à aids. O objetivo do órgão é acabar com a doença, como uma ameaça à saúde pública, até 2030.
No Brasil, o Unaids tem representação desde 2002, com sede em Brasília. O programa atua em colaboração com os governos federal, estaduais e municipais, OSCs, redes de pessoas vivendo com HIV/aids, instituições acadêmicas e outras organizações parceiras.
Programas de educação e conscientização sobre a enfermidade foram pensados para promover o uso massivo de preservativos, além de oferecer aconselhamento e testagem à população. Isso, em especial, às populações-chave: homens que fazem sexo com outros homens, travestis, transgêneros, pessoas em situação de privação de liberdade ou que fazem uso de drogas injetáveis.
Outro passo importante na resposta ao HIV e à aids foi a abordagem multissetorial, o que possibilitou enfrentar os desafios sociais, econômicos e de saúde a partir de ações conjuntas do governo, de ONGs, da sociedade civil e da comunidade afetada. Houve um esforço global para garantir acesso a tratamento, independentemente da localização ou situação socioeconômica de cada indivíduo.
Cenário brasileiro
O Brasil tem uma história significativa e muito respeitada no combate ao vírus e foi um dos pioneiros na oferta de tratamento antirretroviral gratuito e universal. Hoje, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é possível receber atendimento por especialistas e realizar testes rápidos de HIV — e de outras ISTs —, cujos resultados saem em menos de meia hora.
Nas farmácias municipais e unidades de atendimento médico, é possível coletar gratuitamente preservativos internos e externos, bem como o coquetel de medicamentos prescritos para tratar a aids. Por lá, ainda dá para solicitar a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP).
Apesar disso, o país segue com o desafio de reduzir o número de novas infecções. “Nos últimos 10 anos, o número de pessoas que se infectaram com HIV no Brasil tem se mantido estável, mas em um patamar alto, variando entre 48 mil e 50 mil”, destaca Velasquez. Segundo indicadores do Ministério da Saúde, o número de indivíduos soropositivos no Brasil é de 1,08 milhão.
Um estudo publicado em agosto de 2023 na revista The Lancet Regional Health sugere que as condições sociais nas quais as pessoas crescem, vivem e trabalham são determinantes sociais da saúde. Nessa pesquisa, focada no Brasil, avaliou-se que a pobreza — exclusão social, insegurança alimentar e níveis mais baixos de educação — e a negritude são características associadas à vulnerabilidade de contrair o HIV e morrer por aids.
As desigualdades no país criam barreiras sociais que, muitas vezes, impedem que as pessoas em vulnerabilidade consigam ter acesso aos serviços de resposta ao HIV. Junto dessas disparidades, os indivíduos ainda passam por situações de estigma e discriminação que ampliam as barreiras de acesso aos serviços de saúde, tais como o racismo, LGBTQIA+fobia, sexismo e masculinidade tóxica.
“Uma pessoa vivendo em situação de rua ou em extrema pobreza encontra dificuldades intransponíveis para iniciar ou seguir seu tratamento”, exemplifica a diretora do Unaids. “Da mesma forma, uma mulher trans que, ao chegar a um centro de saúde, não se sente acolhida e sofre discriminação — inclusive, com a recusa de uso do seu nome social —, pode decidir não usar mais o serviço, com consequências diretas para a sua saúde.”
Desafios futuros
Novas infecções pelo vírus HIV somaram 1,3 milhão no mundo, em 2022, de acordo com levantamento do Unaids. A taxa é 59% menor do que no pico da crise, em 1995, quando esse valor era de 3,2 milhões. Quanto ao número global de pessoas infectadas pelo HIV, o órgão da ONU indica que em 2022 eram 39 milhões. Dessas, 29,8 milhões estavam recebendo terapia antirretroviral.
A prevalência média do HIV entre a população adulta (com idades de 15 a 49 anos) mundial foi de 0,7% no ano passado. No entanto, esses dados foram mais elevados entre as populações-chave: 2,5% entre profissionais do sexo; 7,7% em homens que fazem sexo com outros homens; 5% em pessoas que injetam drogas; 10,3% em transgêneros e travestis; e 1,4% entre detentos.
“É preciso garantir que a resposta ao HIV chegue a todas as pessoas, especialmente aquelas em situação de maior vulnerabilidade. Isso requer o compromisso de garantir que as políticas públicas tenham abordagem multissetorial e responsabilidade compartilhada”, conclui Claudia Velasquez. “Sem dúvida, o aspecto biomédico e de saúde segue sendo fundamental, mas igualmente importante e estratégico é garantir uma integração com os serviços de assistência social e educação.”
Fonte: Revista Galileu
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