Muitos pacientes têm evitado buscar atendimento neste momento, e este está se tornando um dos efeitos colaterais mais preocupantes da pandemia no Brasil.
No dia 29 de abril, o empresário Miguel da Rocha Correia Lima, de 55 anos, deu entrada na emergência do hospital UMC (Uberlândia Medical Center), em Uberlândia, Minas Gerais, depois de desmaiar em casa.
Lá, passou por um procedimento cardíaco que durou cerca de uma hora, e, apesar dos esforços da equipe médica, acabou não resistindo. Ele teve um infarto do miocárdio do ventrículo direito.
“No dia anterior, meu pai sentiu uma dor no peito, mas, como foi fraca, não deu muita importância, e também achou que não valia o risco de ir ao hospital por causa do coronavírus”, conta a filha Anna Paula Graboski, de 31 anos.
“Os médicos disseram que se ele tivesse procurado ajuda logo, assim que a dor começou, provavelmente estaria vivo, mas, como esperou muito tempo, o coração dele não aguentou”, acrescenta.
Assim como Lima, muita gente tem evitado buscar atendimento neste momento, e isso está se tornando um dos efeitos colaterais mais preocupantes da pandemia no Brasil.
Todas as regiões do país têm registrado quedas brutais nos números de consultas, exames e cirurgias e, consequentemente, aumento de mortes por outras enfermidades que não a covid-19, como infarto do miocárdio, câncer e acidente vascular cerebral (AVC).
Para se ter uma ideia, segundo levantamento do epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em março, a capital paulista contabilizou 743 mortes – excluindo homicídios e acidentes em geral – a mais que a média para o mesmo mês dos últimos cinco anos.
“No período, tivemos 277 óbitos confirmados por covid-19 e 466 por não covid-19, e vários destes, mesmo não tendo sido causados diretamente pela doença, podem ser atribuídos a ela”, afirma o médico.
A explicação é que o vírus, além de agravar a condição de pessoas já debilitadas pelas mais diversas razões, tem feito muitas delas não apenas desmarcarem consultas e até cirurgias e desistirem de ir às clínicas ou pronto-socorros quando não estão se sentindo bem, mas também não serem atendidas por conta da superlotação e do foco no combate à pandemia.
“Soube do caso de uma moça com aneurisma que não conseguiu ser operada porque o centro cirúrgico do hospital que ela procurou foi transformado em UTI para receber pacientes com covid-19. A razão imediata da morte dela não foi o coronavírus, mas de forma indireta foi”, afirma Lotufo.
Situação parecida aconteceu com a dona de casa Isabel Zebelin Duarte, de 85 anos. No ano passado, ela sofreu um AVC. Em março deste ano, apresentou uma piora e ficou internada durante 12 dias em um hospital de Jacareí, no interior de São Paulo.
“Por causa do coronavírus, os médicos acharam melhor dar alta. Eles consideraram que o caso dela não era mais uma emergência, e também precisavam de leitos”, conta uma de suas filhas, a jornalista e radialista Andréa Duarte, de 50 anos.
No dia 7 de maio, Isabel passou mal e uma equipe foi chamada até sua casa. Os profissionais diagnosticaram pneumonia, resultante de estar acamada há tanto tempo, mas optaram por não interná-la novamente. Cinco dias depois, ela faleceu.
“Não culpo o hospital, sei que, hoje, a preferência é para os casos de covid-19, e minha mãe, de um jeito ou de outro, estava recebendo acompanhamento. Mas fico pensando que lá, talvez, os médicos teriam conseguido reanimá-la”, desabafa Andréa.
Menos consultas, exames e cirurgias
Desde o início da pandemia no país, juntando o medo que as pessoas têm da contaminação pelo novo coronavírus, a falta de atendimento em determinados locais e ainda a recomendação dos órgãos de saúde de suspender os procedimentos eletivos (não urgentes), a queda no número de atendimentos, exames e cirurgias só tem aumentado.
Em se tratando das patologias do coração, as principais causas de morte no Brasil e no mundo, levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI) mostra diminuição de 50% na realização de angioplastia primária (procedimento feito em caráter de emergência durante o infarto) em março, e de 70%, em abril, na comparação com o mesmo período de 2019.
“Baseado nesses dados, soou o alerta de que os pacientes não estão procurando os serviços médicos para receber o tratamento. Essa hipótese é reforçada porque esse fenômeno tem sido identificado em outros locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de atendimentos de emergência de parada cardíaca domiciliar cresceu quatro vezes e o de mortes nessa situação, oito vezes”, relata Ricardo Costa, presidente da SBHCI.
O especialista pontua que o infarto é uma urgência médica e, portanto, necessita de intervenção imediata. “Se ele não for tratado, sua taxa de mortalidade pode chegar a 50%, e ainda há o risco de sequelas graves, como insuficiência cardíaca, comprometendo totalmente a qualidade de vida.”
No caso do câncer, pelos dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), de março para cá foram realizadas, nas redes pública e privada, 70% menos operações e entre 50% e 90%, dependendo do serviço, de biópsias para diagnóstico da doença.
Só do câncer de mama, a Sociedade Brasileira de Mastologia aponta diminuição de 75% nos atendimentos em hospitais públicos de pacientes em rastreamento e tratamento para a enfermidade nos meses de março e abril, em relação ao ano passado.
“Estamos assustados com o que temos observado e preocupados tanto com a diminuição nos diagnósticos primários quanto com o acompanhamento. Por causa da pandemia, as pessoas, inclusive as que têm sintomas, estão deixando de ir ao médico e de fazer o rastreamento da doença, e, as que estão em tratamento, de fazer o controle”, diz Alexandre Ferreira Oliveira, presidente da SBCO.
O especialista avalia que isso terá impacto humano e econômico enormes mais para frente. “Se essa situação se prolongar por muito mais tempo, haverá aumento no número de casos, de tumores em estágio avançado e de recidivas, comprometendo seriamente as chances de cura e a sobrevida dos pacientes.”
A pandemia ainda tem interferido nas internações hospitalares. De acordo com a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), nos primeiros quatro meses do ano a queda foi de 18,1%, em relação aos meses de janeiro a abril de 2019.
Focando nas enfermidades crônicas, neoplasias e doenças do aparelho circulatório e nervoso – que incluem câncer, infarto e AVC, dentre outros problemas que exigem tratamento contínuo -, as reduções foram de 23,2%, 20,9% e 26,6%, respectivamente.
Emergências não podem ser negligenciadas
Diante de todo esse cenário, as entidades de saúde brasileiras destacam que, ao mesmo tempo em que o isolamento social é fundamental para minimizar o risco de contágio pelo novo coronavírus, a população não deve suspender o acompanhamento ambulatorial, sobretudo quem sofre de cardiopatias e enfermidades autoimunes, renais, vasculares, respiratórias e oncológicas, adiar exames, consultas e cirurgias sem orientação de um profissional e nem negligenciar quaisquer sintomas importantes.
Também ponderam que médicos, hospitais e clínicas precisam manter os atendimentos aos pacientes com doenças graves e casos emergenciais não relacionados à covid-19.
Por conta disso, a SBCO enviou ao Ministério da Saúde um documento que propõe a criação de vias livres de covid-19, ou seja, de ambientes seguros, para garantir a assistência durante a pandemia e sem riscos de contaminação.
Image caption “Temos feito um controle rigoroso para não haver aglomeração”, diz diretor clínico do Hospital e Maternidade Christóvão da Gama
“Inicialmente, não sabíamos quanto tempo a fase mais crítica da pandemia iria durar. Como agora a expectativa é de que teremos de três a quatro meses até passar o pico e começar um declínio de casos, precisamos adaptar os serviços para retomar os atendimentos suspensos”, destaca Oliveira.
A SBHCI, por sua vez, criou a campanha “O enfarte não respeita quarentena”, com o objetivo de conscientizar e incentivar os brasileiros a procurarem ajuda imediata ao apresentarem os sintomas da doença (dor ou aperto no peito que pode irradiar para o braço, acompanhada de mal estar, cansaço e suor excessivo).
“É imprescindível que se respeite a quarentena, o isolamento social e não haja exposição de maneira desnecessária, mas, diante de um quadro suspeito, o não atendimento ou o atendimento muito retardado, pode trazer sérios riscos”, informa o presidente da entidade.
E ele acrescenta: “Não é preciso ter medo de ir até o hospital. Muitos estão trabalhando com protocolos bastante rigorosos para dar assistência segura aos pacientes”.
Nas três unidades hospitalares do Grupo Leforte (duas em São Paulo e uma em Santo André, no ABC Paulista)., por exemplo, as equipes médicas e de enfermagem de outras áreas são separadas das que estão na linha de frente do combate à covid-19. O mesmo protocolo é adotado nos ambulatórios, salas de consultas, centros cirúrgicos, áreas de internação e UTIs.
“Também temos feito um controle rigoroso para não haver aglomeração. Espaçamos as consultas, que passaram a ser realizadas de 30 em 30 minutos, e limitamos a entrada nos elevadores”, relata Sérgio Gama, diretor clínico do Hospital e Maternidade Christóvão da Gama.
A rede também tem realizado o teste PCR para a detecção do novo coronavírus em todos que passarão por cirurgias de urgência e precisem ser entubados, ou conforme solicitação do médico.
“Neste momento, é fundamental que as pessoas saibam que, se precisarem de ajuda, encontrarão ambientes protegidos e preparados”, finaliza o especialista.
Fonte: Época Negócios
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